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É claro que é presunçoso, quase risível, alegar que se escreve uma história do século XXI quando ainda estamos em 2023. No entanto, estão emergindo claras tendências estruturais; e, ainda que seja impossível prever os próximos "cisnes negros" (eventos radicalmente imprevisíveis com consequências de longo alcance, segundo Taleb), essas tendências estão tão bem estabelecidas que será difícil desviar delas. Posso identificar quatro.
A primeira é a estagnação da Europa. Desde 2000, a Europa empacou em todas as frentes. Crescimento anêmico, natalidade combalida, desinvestimento militar – dos quais países como a Bélgica e a Alemanha ainda não emergiram – e, talvez a coisa mais preocupante de todas, segundo todos os rankings e critérios internacionais (patentes, investimento de capital, mercado de ações gigante como o das Big Techs), a Europa parou de inovar. Inova-se nos EUA; continua-se a inovar na Ásia; mas dificilmente há alguma inovação na Europa. E se acrescentarmos a isso a obsessão da União Europeia com o meio ambiente, que se tornou pouco mais do que um maquinário para impor limitações, aporrinhações, punições e taxas em nome da "transição energética", entende-se que a estagnação é um horizonte do qual a Europa terá muita dificuldade de se libertar. Mas, como a história mostra, estagnação sempre é só um estado intermediário. Ao longo do tempo, a estagnação é quase sempre a antessala, o prelúdio da regressão.
Se os fatos tiverem alguma relevância, o século XXI será mais norte-americano do que qualquer alternativa que se possa conceber agora.
As inteligências raras do pensamento francês, que têm a especificidade de estarem erradas quase o tempo inteiro sobre todos os assuntos (é a passion de l’erreur!) passaram os últimos cinquenta anos nos dizendo que o século XXI seria “chinês”. Aprendam chinês o mais rápido possível, que eles estão a caminho. Vimos bem. A China está estagnando. Na verdade, a China está envolta por uma crise em todos os níveis, e terá a maior dificuldade em superá-la. Estagnação econômica, colapso demográfico, desemprego de 25% entre os jovens chineses, colapso do mercado de ações, destruição do centro financeiro de Hong Kong, isolamento monetário (e pensar que tantos predisseram a substituição do dólar pelo yuan!) e crescente isolamento geopolítico.
A China fala de Taiwan, mas não tem como entrar num conflito militar de larga escala com os Estados Unidos, seus aliados locais e seus pequenos aliados da OTAN. Acima de tudo, o regime chinês, que é uma ditadura atroz no qual as pessoas não se demitem, pois desaparecem, não tem os recursos institucionais para uma reforma pacífica. Xi decide, decide sozinho, como um deus entre homens (Aristóteles) e, infelizmente para os chineses, ele parece tão esclarecido e aberto a críticas quanto Luiz Inácio Lula da Silva.
Se houver um único elemento do sistema norte-americano que devemos replicar na Europa, é a flexibilidade do mercado de trabalho.
Em seguida, há o resto do mundo, o que no século XX era conhecido como Terceiro Mundo. Comparado ao século anterior, o Terceiro Mundo está se saindo bem; de fato, consideravelmente melhor, porque se tornou muito mais rico, graças à economia de mercado e à abertura ao capitalismo internacional (embora não tenha se tornado politicamente muito aberto no âmbito doméstico). Os especialistas dizem que os BRICS são o futuro, assim como nos disseram que o século XXI seria chinês.
O problema é que os dois maiores componentes do grupo, China e Índia, estão quase em guerra em suas fronteiras, e que há muito mais razões para dividir os BRICS do que para uni-los, e que uma organização só pode tomar decisões com base no princípio do mínimo denominador comum. O que, no caso dos BRICs, está próximo a zero. Os BRICs estão ficando mais ricos, bilhões de pessoas estão saindo da pobreza e estamos felizes com isso. É gratificante que países como a grande democracia brasileira estejam pensando num futuro independente do Ocidente (embora eu pessoalmente torça para que a América do Sul permaneça fiel às suas raízes ocidentais). No entanto, a ideia de que os BRICS irão moldar o século XXI não resiste à análise.
Nos EUA, é possível contratar e demitir sem causa, com uns poucos dias de aviso.
Por fim, há o inefável sistema dos EUA, que amiúde brinca com seus próprios limites, e que está se preparando para eleger como presidente ou um lunático embriagado com seu próprio ego, ou um velho senil afundado até os cabelos em múltiplos pactos de corrupção do seu brilhante filho Hunter (que entrará para a história do mesmo jeito que os filhos degenerados dos imperadores romanos). Não parece uma bela escolha.
Ah, e ainda há incontáveis problemas nos Estados Unidos, tais como a imigração, que é tão sem lei quanto aqui na Europa. O ódio e as divisões políticas são tais que, inevitavelmente, haverá episódios de violência. Em Nova Iorque, a gente está morrendo pelas ruas a cada esquina; em São Francisco e Los Angeles, é a mesma coisa: resultado de centenas de políticas aberrantes do Partido Democrata. Sim, os Estados Unidos estão doentes de muitos jeitos.
Mas são também prósperos, mais prósperos do que nunca, formidavelmente inovadores, e à frente da mais estonteante concentração militar jamais reunida sobre a face da terra, e estruturalmente capazes de gerir crises econômicas e financeiras melhor do que seus competidores. E por quê? Pela simples razão da flexibilidade: nos EUA, é possível contratar e demitir sem causa, com uns poucos dias de aviso. Tão logo uma empresa se expande, contrata numa escala massiva, por saber que se tiver tempos difíceis, poderá demitir com igual rapidez. Uma empresa é só uma entidade econômica racional.
Se houver um único elemento do sistema norte-americano que devemos replicar na Europa, é a flexibilidade do mercado de trabalho. Isso vai acontecer? Não, é claro que nunca vai acontecer. E é por isso que a Europa vai continuar estagnada, enquanto os EUA abrem “o caminho do futuro”. Se os fatos tiverem alguma relevância, o século XXI será mais norte-americano do que qualquer alternativa que se possa conceber agora.
Drieu Godefridi, belga, é doutor em Filosofia do Direito pela Sorbonne, autor de "O Reich Verde: Do aquecimento global à tirania verde" (Armada, 2021).
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos