Membros do Reporters Sans Frontieres (Repórteres Sem Fronteiras) protestam contra o fechamento do jornal Apple Daily de Hong Kong em frente à embaixada da China em Paris, França, 25 de junho de 2021| Foto: IAN LANGSDON/Agência EFE/Gazeta do Povo
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Quando o Reino Unido devolveu a colônia de Hong Kong para a China, em 1997, sabia que, após 50 anos do acordo – período no qual, em tese, a China não se intrometeria no sistema de governo local, o que ficou conhecido como “Um País, Dois Sistemas” –, haveria sérios problemas para os hongkongers. Entretanto, o problema eclodiu mais cedo, principalmente quando estudantes e líderes políticos locais, sentindo uma opressão cada vez maior de Pequim, começaram movimentos políticos e manifestações a partir de 2014, principalmente com a “Revolta dos Guarda-Chuvas” e com os protestos de 2019 e de 2020.

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Pequim sempre influenciou a região de Hong Kong com políticos aliados, partidos manipulados e jornais comunistas. Entretanto, sempre respeitou as eleições locais, os resultados eleitorais e a Lei Básica de Hong Kong, que era baseada em princípios democráticos, na tripartição dos poderes e nos direitos individuais. Tudo isso mudou quando os protestos de 2019 e de 2020 ganharam cada vez mais as ruas, fazendo com que a cidade de Hong Kong e seus moradores, cansados das intromissões de Pequim e sentindo que seus direitos estavam cada vez mais ameaçados, começaram uma campanha visando à real independência da cidade. A situação ficou fora do controle da polícia local, e a líder da cidade, Carrie Lam, se mostrou incapaz de responder aos anseios da sociedade, principalmente por sua forte ligação com Xi Jinping.

A situação ficou tão séria que Pequim preparou um ataque militar à cidade, o que foi considerado pela Inglaterra uma “quebra” do acordo de devolução, o que levaria o Ocidente a ver Pequim como um agente que não honra seus acordos. Então, os chineses recuaram, mas adotaram uma abordagem de política interna com a aprovação da Lei de Segurança Nacional de Hong Kong. Os detalhes da nova legislação foram mantidos em segredo; nem mesmo Carrie Lam os conhecia, até que a nova lei foi publicada, apenas em chinês, em 30 de junho de 2020. Ela entrou em vigor imediatamente após a publicação, com o título “A Lei da República Popular da China sobre a proteção da Segurança Nacional na região administrativa especial de Hong Kong”, na prática retirando o poder de autolegislação de Hong Kong e desafiando toda a comunidade internacional.

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Entre os principais pontos da nova lei, estabelecia-se que: o governo chinês deve estabelecer um escritório de segurança em Hong Kong e com seu próprio pessoal; o chefe do Executivo de Hong Kong pode nomear juízes; a mídia e as organizações de notícias estrangeiras devem ser monitoradas de perto; o governo chinês, em casos considerados graves, tem o direito de conduzir julgamentos a portas fechadas; o governo deve prevenir o incitamento ao ódio contra o governo chinês ou local; secessão, subversão, terrorismo e conluio com países estrangeiros são punidos com uma pena de prisão que vão de três anos a prisão perpétua; a interrupção grave ou a sabotagem dos sistemas de controle eletrônico para fornecer e gerenciar serviços públicos, como água, energia elétrica, gás e transporte, pode ser considerada terrorismo; a polícia pode realizar, em caso de urgência, buscas na casa de um suspeito sem necessitar de um mandado; a polícia pode proibir um suspeito de deixar Hong Kong; o governo pode congelar os bens de um suspeito; e o governo pode monitorar a web e solicitar aos provedores de internet que removam informações.

O resultado prático disso foi que o jornal Apple Daily, publicado em Hong Kong desde 1995 e fundado por Jimmy Lai, encerrou suas operações e teve seu fundador preso. O jornal foi fechado em 17 de junho de 2021 pelo governo chinês, que também congelou os ativos da empresa e de Lai. Como resultado do congelamento de ativos, o Apple Daily ficou impossibilitado de pagar salários e contas de fornecedores, tendo de encerrar suas operações. Em uma pesquisa do Reuters Institute realizada no início de 2021, o Apple Daily foi a quarta fonte de notícias off-line mais usada em Hong Kong, enquanto seu site foi o segundo mais usado entre a mídia de notícias on-line na cidade.

A posição editorial do Apple Daily, favorecendo os movimentos pró-democracia em Hong Kong, tornou-o sujeito a boicotes publicitários e a pressões políticas. Depois que a polêmica Lei de Segurança Nacional de Hong Kong foi promulgada, a polícia invadiu sua sede em 10 de agosto de 2020, uma operação policial criticada por vários governos e por grupos que defendem a liberdade de imprensa. Isso mostrou a face mais sombria de Pequim, que nunca tolerou a democracia e os princípios ocidentais de igualdade.

Esse tipo de legislação pode ser comparado ao nosso AI-5 dos tempos da ditadura militar, e o fechamento de um jornal, por mais crítico que ele seja ao governo de plantão, é de fato um sinal de padecimento de uma democracia. Neste caso é o fim, na prática, do modelo “Um País, Dois Sistemas”. Hong Kong poderá continuar a ser um grande e importante centro financeiro internacional, mas dificilmente voltará a ser um centro em defesa da democracia e dos direitos individuais, a mais importante herança deixada pelos ingleses durante o tempo de sua ocupação.

Igor Macedo de Lucena é economista e empresário, doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Lisboa, membro da Chatham House – The Royal Institute of International Affairs e da Associação Portuguesa de Ciência Política.

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