No Brasil, boa parte do debate jurídico tem focado em um ponto: a concretização dos direitos fundamentais, com crescente cuidado com os direitos de caráter prestacional (assim como o vinculado tema do controle das políticas públicas). Qualquer jurista que chegar hoje ao país, por certo pensará que já vivemos uma espécie de "Allgegenwärtigkeit der Verfassung", isto é, uma "onipresença da Constituição". Entretanto, no caso de verificarmos se, efetivamente, a Constituição está sendo cumprida/concretizada, mesmo uma análise perfunctória já mostraria a efetiva falta de políticas públicas, a inércia do Legislativo na regulamentação de importantes direitos e matérias constantes da Constituição e a falta de um maior engajamento constitucional por parte das diversas instâncias de administração da justiça.
Observe-se: o que sempre se defendeu na teoria constitucional é que a nossa Constituição é compromissória e que vincula os poderes públicos, sendo certo que até mesmo as relações privadas encontram-se "atravessadas" pelo direito constitucional cabendo lembrar a assertiva do grande constitucionalista Paulo Bonavides: "ontem os Códigos; hoje, as Constituições!". De fato, estamos a construir no Brasil uma teoria capaz de dar conta da desejada realização do projeto constitucional.
O que devemos perguntar sem tréguas é o que acontece quando o Supremo Tribunal Federal (STF) chama para si a responsabilidade de, efetivamente, fazer valer tudo que tanto se tem defendido desde 1988. Depois 20 anos, nunca o STF esteve tão sintonizado com tal processo e tão envolvido na esfera das tensões entre os poderes. Vejamos: o tema das liberdades públicas veio à tona, tendo o STF assumido o papel de garantidor das garantias constitucionais, com a concessão de centenas de habeas corpus, beneficiando desde ladrões de sabonete até autores de crimes do colarinho branco, demonstrando que a justiça constitucional não é uma justiça de classe, ainda que nem sempre seja esta a imagem difundida pela mídia.
Em relação ao Legislativo, seguidamente questionado no que diz com a adequação constitucional da sua produção normativa, ou mesmo da falta de atuação, inevitável e necessária a intervenção do STF em matérias de alta complexidade, como a discussão em torno da legitimidade constitucional das pesquisas com células-tronco, objeto de importante decisão em 2008. E se o Executivo não enfrenta (seja lá por qual razão) adequadamente o problema dos movimentos sociais? Lá vai o presidente do STF assumir posição na esfera publica, até por força da legítima cobrança nesse sentido.
O que não está dito com a devida clareza? O inconfessável é que o Legislativo e o Executivo têm ficado, muitas vezes, imunes às críticas e a salvo das pressões sociais, na medida em que estas são habilmente "transferidas" para o STF. Na verdade, está-se "judicializando" não só a política, mas também o nosso cotidiano. Corremos o risco de construir uma cidadania ficta, dando a entender que cidadania é simplesmente ter direito de bater às portas do Judiciário, mais especificamente do STF, nele depositando todas as esperanças e dele cobrando todas as responsabilidades.
Mais grave ainda que a judicialização da política da qual o STF não tem culpa, porque não pode deixar de apreciar as demandas que lhe são endereçadas é o ativismo judicial, que, ao fim e ao cabo, acaba desaguando no STF. Com efeito, na medida em que os juízes em geral também são constantemente demandados a resolver os "problemas da República", verifica-se que não raras vezes acabam por substituir a legislação por suas convicções pessoais, seja para o bem, seja para o mal. Como resultado, tem-se que o STF vai sendo obrigado a examinar incontáveis reclamações. Ou seja, o STF se transforma em fiscal das decisões de primeiro e segundo graus, parecendo correto afirmar que institutos como o da Repercussão Geral e outros mecanismos de vinculação (por exemplo, as súmulas) são apenas o resultado de uma excessiva judicialização da vida brasileira.
Todas essas tensões, como é natural, chegam a um clímax em determinado momento, resultando muitas vezes na demonização do STF e, principalmente, do seu presidente. Ora, o Brasil é um país absolutamente complexo, com uma Constituição que é uma das mais generosas em direitos do mundo. Paralelamente, temos os movimentos sociais, no exercício legítimo da sua cidadania, buscando, por meio de ações coletivas, a efetivação de direitos que o Executivo e o Legislativo não raras vezes desconsideram ou mesmo violam, por ação ou omissão.
Em face disso, quando o STF inicia o enfrentamento de casos que não estavam sendo discutidos e resolvidos adequadamente, preocupa-nos a formação de um imaginário que simplifica o problema, como se fosse possível também à Suprema Corte se esquivar da resolução de tão sérias questões. Veja-se a pauta dos assuntos que o STF deve resolver e se terá um retrato da situação. É como olhar a Constituição: por que colocamos "tudo" na Constituição? Porque desconfiamos dos Poderes da República? Queríamos que tudo estivesse garantido não apenas na lei, mas também na "Lei Maior". Nossa Constituição democrática de 1988 lançou o STF (e o Judiciário) para esse campo da responsabilidade pelo próprio projeto social ali desenhado. E como evitar que essa Lei Maior não se transforme em simples folha de papel? Qual é o custo histórico do esvaziamento de uma Constituição no mundo contemporâneo, quando as grandes democracias se fizeram grandes justamente por cumprirem suas Constituições?
Já pelo que aqui foi pautado, percebe-se que não se pode simplesmente acusar o STF de promover a judicialização da política simplesmente com base no levantamento do número de demandas e na identificação de sua natureza e objeto. É preciso não esquecer que o STF não atua sem ser provocado, sendo no mínimo cômodo para os (demais) poderes e instituições da República, uma vez provocado o deslocamento da discussão, demonizarem o suposto protagonismo indevido do STF em uma série de temas de impacto nacional.
Importante é que não se trata aqui de avaliar o mérito dos julgamentos, mas de apontar para a natureza da dinâmica que tem levado a uma crescente judicialização da vida brasileira. E o presidente do STF, que fala pela Corte, ou silencia, sendo fatalmente acusado de omissão e mesmo de desrespeito, ou se posiciona, e acaba igualmente sendo "culpado" por contrariar expectativas e anseios.
De tudo isso, o que se pretende extrair é a necessidade de compreendermos que não é instaurando um ambiente maniqueísta e uma República de "bodes expiatórios" que estaremos a construir uma autêntica Democracia. Tensões e embates na esfera pública, a despeito de causarem muitas vezes algum desconforto, certamente acabam contribuindo para uma futura síntese e progresso. Afinal, do STF, espera-se que decida ou se espera que decida por não decidir?
André Ramos Tavares é consultor na área de Direito Público e professor de Direito Constitucional.
Clèmerson Merlin Clève é advogado e professor de Direito Constitucional.
Ingo Wolfgang Sarlet é juiz de Direito e professor de Direito Constitucional.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça e professor de Direito Constitucional e de Hermenêutica Jurídica.