A coluna de Pedro Nery nesta Gazeta, em 17 de março, criticou proposta de dar ao Rio status de cidade federal, algo “perverso” para outros entes federados. Trata-se de oportunidade para debater o tema, que ganhou visibilidade com a descoberta de que o governo Temer flertou com a transformação da cidade e o entorno em território federal.
Antes disso, artigos meus e de Christian Lynch, também alvos do colunista, defenderam a cidade federal. Nery deixa de lado História e Política, o que trivializa sua análise, incapaz de enxergar os benefícios para o Brasil em oficializar o Rio, a exemplo de países parecidos, 2.ª capital. Na imprensa, Pompeu de Toledo apoiou a ideia na Veja.
Ex-capital ainda federal
A história política do Rio, capital nacional por 200 anos, legou-lhe imensa estrutura federal que é (mal-)gerida de Brasília. Diferente do que supõe Nery, o status de cidade federal não busca recursos, mas racionalizar a gestão do parque federal na capital do estado cuja própria sede de governo (Palácio Guanabara) pertence à União.
Nery faz tábula rasa da história para pintar a cidade federal como privilégio, pois se exclui Salvador, outra ex-capital. Mas Salvador foi capital na Colônia – quando o centro era, por definição, Lisboa. O Rio foi não só sede nacional plena, mas do Império Português e de terras em 5 continentes, com o Reino Unido nele criado em 1815.
Para usar expressão de Bento Munhoz da Rocha, o traço nacional é mais profundo – a cidade abriga hoje 64 órgãos federais; Salvador, apenas 7. Estão no Rio o Museu Histórico Nacional (dono de 2/3 do acervo do Minc) e o destruído Nacional, cuja perda onera a todos; não somos arquipélago medieval de cidades, mas uma nação.
Em Cidade Nacional, associo à perda do status federal do Rio o abandono do museu, que deveria ser atribuição direta de ministro, não do reitor da UFRJ. A maior universidade da União já tem problemas próprios na Cidade Universitária (Federal). O Rio tem ainda o maior colégio (Pedro II) e rede de escolas técnicas federais (IFRJ).
Paulo Cruz: João Camilo de Oliveira Torres e o conservadorismo para reformar o Brasil (publicado em 30 de abril de 2019)
Tampouco se transfeririam servidores federais, o Rio já os tem em maior número que o DF. Um carioca tem 12 vezes mais chance que um paulista de trabalhar no MS. São 6 hospitais federais (em que lugar o hospital dos servidores estaduais é federal?), 9 universitários, institutos como INCA, órgãos como ANS e Fiocruz, fora as constantes intervenções – em 2005, a União federalizou novas unidades. Mal gerido, parte do aparato, pago por todos os brasileiros, caiu no domínio das milícias locais.
Minotauro federativo
Além da perda da capital nacional, a fusão imposta por Geisel em 1975 entre Guanabara e velho Rio desarticulou ambos os estados. Roberto Campos creditou-a à megalomania da época – o atual estado é, de fato, uma transamazônica federativa. Agravou-se a (con)fusão de competências: o Theatro Municipal é gerido pelo estado!
Com as populações atuais, é como se a União, sem consulta popular (hoje seria inconstitucional), fundisse Santa Catarina (capital) ao Rio Grande do Sul (interior). Rabello de Castro já propôs que cariocas e fluminenses são dessemelhantes como catarinenses e gaúchos, que, por menos que a fusão, já guerrearam contra o poder central – representado, diga-se, pelo Rio. Enquanto os estados se formavam, com suas mitologias e elites políticas, o Rio representava o Brasil e a unidade nacional.
Nery crê que a representação parlamentar do Rio é exemplar porque se formou bancada temática na última legislatura. Mas seu retrato foi briga entre 2 deputados seus – um paulista, outro baiano – em tema nacional: o impeachment. Em lutas federativas como royalties do petróleo, quem apanha é o Rio – vide a velha exceção ao ICMS do produto em favor de SP. O ente sem patriotismo e simbologia estaduais defende-se mal.
No minotauro federativo, a cabeça é federal e o corpo, estadual. Academia de Letras, jornal, arquivo e biblioteca fluminenses estão na ex-capital, Niterói. O Rio sedia os equivalentes federais: ABL, Arquivo, Biblioteca e (tele)jornais Nacionais. A força magnética da capital postiça esmaga os fluminenses, cujo ostracismo é tornado invisível pela enganosa homonímia entre a cidade e o antigo estado. Ao reduzir órgãos públicos à “renda” gerada, Nery não enxerga a cacofonia federativa.
(In)segurança nacional
As polícias carioca e fluminense nunca se recuperaram da fusão. Importante lembrar que é no Rio onde a polícia mais morre e mata no Brasil, talvez no mundo. Nery enfoca mortes intencionais – em que o Rio figura mal, mas não é a pior capital – para atacar a federalização. Desconsidera o desafio do crime organizado, que erodiu a autoridade local no Rio, “o lugar onde mais se sente o não governo”.[
O crime organizado funciona pelo mimetismo – por isso, não se pode comparar Rio e Macapá. A violência carioca difunde efeito imitação pelo Brasil. O PCC foi inspirado no Comando Vermelho. O dano da criminalidade no Rio não se enquadra em uma estatística também devido ao caráter sistêmico, como capturou Elio Gaspari:
Há estados onde os bandidos fogem dos quartéis pela porta da frente. Também há estados onde os presídios de segurança máxima recebem pizza-delivery e o secretário de segurança visita delinquentes. Talvez haja estados onde a Secretaria de Fazenda tem um propinoduto que começa na Suíça, e a patuléia, por muito esperta, faz que não sabe onde termina. O que não há, nunca houve, foi um estado onde todas essas coisas acontecem ao mesmo tempo.
Se outros tantos não bastarem, há motivo especial para evitar narcoestado no Rio: a presença maciça das Forças Armadas, que torna o descalabro carioca matéria de segurança nacional. Suas escolas de elite concentram-se no Rio e arredores: ESG, Eceme, Ecemar, Colégio e Escola Navais e Aman. Militares de outras regiões formados no Rio nele se radicam. Exemplos? Os atuais presidente e vice da República.
A Marinha tem no Rio suas instituições, 53 mil efetivos (37 mil na cidade) e 92% dos civis. A 1.ª intervenção federal sob a Constituição de 1988, operada por militares no estado – na prática, na cidade – do Rio sequer mudou sua paisagem, sempre ornamentada pelas FAs. O problema do Rio, uma vez mais, não são recursos, mas gestão. A gestão federal na segurança, em 2018, reduziu a criminalidade (roubos, homicídios dolosos, 23%); 72% (21% contra) da população quis a sua prorrogação.
2ª capital do Brasil
Capital colonial, imperial e republicana, o Rio incrustou-se no imaginário mundial como ideia de Brasil. Não há sinal de que deixará de ser nosso rosto e marca, celebrada ainda hoje em filmes (Bohemian Rhapsody) e séries (La Casa de Papel). Há boa razão para isso: o Rio continua a representar o Brasil.
É dona dos símbolos nacionais, palco dos megaeventos. A própria União impinge ao Rio a função de 2ª capital: ECO92, Pan2007, Jogos Mundiais Militares 2011. O faroeste urbano não a impede de sediar a maior feira de segurança latino-americana (Laad). Rio+20, Jornada Mundial da Juventude, centro logístico/final da Copa 2014 e Olimpíadas 2016, que Nery misteriosamente vê como fracasso.
O legado de 2016, de evidente interesse nacional, está abandonado na cidade do COB, da CBF e da seleção canarinho. Por que não devolver as autoridades esportivas ao Rio, para cuidar deste patrimônio? Neste ano, o Rio será o centro logístico e sediará a final da Copa América. Em 2020, a 1ª Capital Mundial da Arquitetura da Unesco abrigará congresso da categoria. O que faz o Ministério do Turismo em Brasília?
Capitais distantes do povo associam-se a piores governos, Brasília está entre as mais isoladas do mundo. A maioria dos brasileiros nunca viu um ministério. Por que não equilibrá-la com outra capital, no centro demográfico, já vocacionada ao ofício? A União se valeria de servidores e estrutura federais já existentes – em nenhum outro lugar há tantos imóveis desocupados da União, que gasta 1,6 bilhão por ano em aluguéis.
Voltam pastas como Minas e Energia, que estaria mais próxima do povo e das entidades do setor de alcance federal no Rio: Petrobras, Pré-Sal Petróleo, Vale, na prática a ANP, IBP, Cenpes, EPE, Eletrobras, Eletronuclear, CNEN, INB e Nuclep.
Experiência internacional
Exemplos internacionais são ilustrativos, mas Nery por eles passa ligeiro como alguém que põe a mão em água fervida. A geografia política indica que emergentes, como o Brasil, costumam ter 2 capitais: uma continental (Brasília), outra costeira (Rio).
O paradigma é a Rússia. São Petersburgo, costeira, sede imperial por dois séculos, é hoje cidade federal, uma 2.ª capital. A polícia vincula-se a Moscou. Não se imagina um russo a dizer que seu status federal é perverso para as cidades da Sibéria.
Istambul tem a segurança gerida pelo governo central, a China, que tem tradição de 2 capitais como a Índia, tem cidades, como Xangai, controladas pelo centro. Egito, Coreia do Sul, Malásia e Chile têm 2 capitais. A África do Sul tem 3 capitais – a sede costeira, Cidade do Cabo, é parecida com o Rio.
No Brasil, toma-se por dogma a experiência dos EUA – mas há nuances, nossos grandes estados diferem dos que eram territórios até 1988. Trinta anos são curta quadra histórica. Vale a lição do cavalo de Calígula tido por senador tanto para o Rio inventado em 1975, como para alguns ex-territórios – a intervenção em Roraima não deixa mentir.
Rediscutamos territórios (e Macapá!) nas fronteiras, bem como Rio e Brasília. Os países ajustam-se à realidade, não a torturam em nome de modelos. Campeã mundial em austeridade econômica, a Alemanha tem 2 capitais: Berlim e Bonn, cidade federal.
Economia
O Rio é o 2.º estado que mais cede em impostos federais – em 2018, 145 bilhões, só 25 devolvidos pela União. Nada mais justo, é o 2.º PIB. Mas, para Nery, números andam sozinhos: se o Rio é rico, deve funcionar, não importa o abismo histórico frente a Minas ou SP. Novamente, impressiona o fracasso sistêmico: foi o único estado a reprovar em todos os critérios do Tesouro para crise fiscal e administrativa em 2016, ano em que se decretou a calamidade financeira ainda vigente.
Nery ataca espantalho por ele mesmo criado ao ligar equivocadamente a cidade federal à assunção, pela União, da dívida estadual. Pode-se, aliás, fingir que a dívida é pagável, algo que o próprio secretário de Fazenda não crê, ou reestruturá-la, com o redesenho do Rio, que deixaria de ser o homem doente da Federação.
A atual crise, que Nery adorna com frase de Marcos Lisboa, é ponta de iceberg. Entre capitais, o Rio teve a maior queda em participação no PIB do país entre 1970-2010. Para Silvia Bastos, a fusão prejudica tanto Guanabara como velho Rio. Seus quadros não raro gerem o Brasil – Campos, Gudin e Simonsen (críticos da fusão), a equipe do Real, Levy e Guedes – mas o estado tem as piores contas do país.
O típico economista carioca troca órgãos locais por federais no Rio: BNDES, BC, Ipea, Casa da Moeda, CVM, INPI, Inmetro e IBGE, ao alcance de Guedes, que despacha na bela sede do ministério na cidade. Em calamidade pública, sob tutela federal, as devassadas contas estaduais amiúde se deparam com um técnico carioca ao cruzar o balcão do governo federal. O Rio é uma exuberante distopia federativa.
Notas Finais
O Rio é cidade federal. Fingir que não o é custa caro. O hiato entre o que o Rio é e a roupagem que lhe foi outorgada é (mal-)preenchido pelas intervenções federais – oficiais ou brancas – em áreas como saúde, segurança e finanças. A corrupção desmesurada, a violência e o descalabro econômico alimentam-se da fratura gerada pela desconexão entre a identidade política do Rio e seu atual figurino federativo.
O estado, como o minotauro original, devora o que vê pela frente – no caso, recursos locais e federais. A capital ainda é federal. Para sua gestão eficiente, deve-se oficializar, a exemplo de nações semelhantes, a 2.ª capital – e os fluminenses recriam seu estado, com identidade própria. O Brasil resolve o déficit democrático e preserva, sem sobrepeso fiscal, o que ilustre governador paranaense conceituou cidade nacional.
Igor Abdalla é PhD em Ciência
Política, economista e diplomata. Opiniões pessoais, não refletem posições do
MRE.