Túmulos de vítimas do Massacre de Sharpeville, na África do Sul.| Foto: Andrew Hall/Wikimedia Commons
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No dia 21 de março celebra-se o Dia Internacional de Luta contra a Discriminação Racial, recordando 69 pessoas que, há 60 anos, foram assassinadas pelas tropas armadas a serviço dos supremacistas brancos na África do Sul. No dia anterior, mais de 20 mil pessoas haviam decidido protestar contra a Lei do Passe, promulgada sob o regime do apartheid, limitando negros aos subúrbios. A lei era inspirada nas Leis Jim Crow, então vigentes no sul dos Estados Unidos, e tinha como fundamento a segregação dos negros e a defesa da superioridade racial branca.

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Frente ao dilema entre continuar morrendo aos poucos ou se rebelar, o Congresso Pan-Africano e o Congresso Nacional Africano, este então comandado por um jovem líder de nome Nelson Mandela, atendeu ao chamado da população e convocou uma reunião, na qual, entre disputas e discussões, entendeu-se que se deveria realizar um protesto pacífico, pautando-se no volume de pessoas rebeladas e em sua possibilidade de tensionar as instituições do país. Os 20 mil manifestantes estavam dispostos a serem presos por aquela ação, calculando que seria inviável a prisão de todos os manifestantes e que o sistema se veria obrigado a observar suas demandas.

Estavam errados, e, como mais tarde comentou Mandela, nesses casos aprende-se que o erro no pensamento significa o sacrifício com a vida. No dia 21 de março, data estabelecida pelo Congresso, marcharam rumo às portas da seção branca da cidade e, nos primeiros sinais de protesto, foram alvejados à queima-roupa pela polícia. O acontecimento definiria os próximos rumos do país e do mundo: o governo sul-africano respondeu que esta seria a prova “da ameaça que a população negra fazia pesar sobre o país”; Mandela, por sua vez, bem como parte dos líderes dos movimentos e associações civis, ingressou na linha armada de combate, algo que até então havia declinado, mas de que, frente a tais acontecimentos, admitia não ser possível mais esquivar. Em 1962 Mandela é levado preso e só sairia cerca de 30 anos depois, dando início, finalmente, a uma série de movimentos que suprimiriam as políticas segregacionistas na África do Sul.

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Onde ainda existe a necessidade de relembrar datas de massacre de cunho racista, é porque ali ainda existe desejo racista, ignorância racista, falta de amor racista. Fiquemos atentos. Nada está conquistado

Dois anos depois de ocorrido o massacre, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma resolução condenando as políticas racistas do apartheid na África do Sul, convocando seus membros a cortar relações econômicas e militares com o país. Na sequência, em 1966, criou o Dia Internacional da Luta Contra a Discriminação Racial em memória ao Massacre de Sharpeville. Em 1973, aprovou a resolução que classificava o apartheid como um “crime contra a humanidade”. E, finalmente, em 1974, expulsou a África do Sul de sua Assembleia, à qual o país só retornaria anos mais tarde, com a saída de Mandela da prisão e sua eleição presidencial.

O que significa essa data? Que sentido ela assume em nosso contexto atual? Por que ainda é preciso falar e reforçar que devemos lutar contra a discriminação racial?

Primeiramente, a discriminação racial é uma colocação falsa, que obtém seus efeitos de realidade, efeitos perversos e sanguinários, como é o caso do referido massacre, mas que nem por isso deixa de se basear em uma fantasia (assim como o medo que tinham os antigos navegadores em navegar para além do horizonte, acreditando que lá existia um abismo). Em todas as comunidades humanas se procede por classificação, diferenciação, distinção dos elementos que se apresentam à realidade. Mas fazê-lo através da raça é operar uma falsa diferenciação, em si mesma depreciante, visando o objetivo de hierarquizar de forma exacerbada.

Raça não é uma categoria biológica. Ela não existe, em si mesma, na natureza, tampouco entre os seres humanos. Raça é uma categoria social, baseada na crença e estabelecimento de códigos e demarcadores hierarquizantes. Politicamente, se tem entendido que “raça” deve designar todo o ser humano – a raça humana –, aí incluídos todos os que, com muita luta, conseguiram o nobre privilégio de ser reconhecidos como seres humanos. Durante séculos, pessoas de pele negra foram consideradas coisas, propriedade. Assim está inscrito nas constituições escravocratas, no Code Noir de Luís XIV, que limitava o número de chibatas de castigos, e com isso gerou insubordinação nos proprietários que defendiam ter livre arbítrio com tudo aquilo que fosse seu ou sua.

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As datas de homenagem assumem a função de destacar, no correr dos dias, que alguma coisa importante aconteceu no passado, e que deve ser lembrada. Portanto, que aquele acontecimento deve ser trazido para o presente, revivido, visando extrair seus benefícios potenciais. Nesse caso, é um acontecimento negativo: dia de massacre, de dor e de sofrimento. Em que uns perderam familiares e em que outros perpetraram essas perdas. E, no entanto, mediante o estabelecimento dessa data simbólica, todos, isto é, tanto aqueles que mataram quanto os que sofreram as mortes, ficam sujeitos a observá-la e a reviver o fato relembrado. Daí por diante o levaremos em nós, em nossas vidas cotidianas e para as nossas relações.

Nesse caso, a intenção é evitar que sucumbamos aos mesmos erros; que, observando-os de longe, distanciados pelos 60 anos que se interpõem entre nós e o fato, possamos enfim contornar as possibilidades de reincidir no erro, no sofrimento, e, enfim, seguir em frente, com o erro superado, rumo a uma vida melhor, menos sofrida, mais feliz e com mais amor.

Isso é o que se chama “aprendizado”: de certo modo, o registro e utilização das experiências acumuladas nas culturas humanas. Freud alertava sobre isso em suas análises sobre o papel do Totem e do Tabu, a saber, de regular as práticas evitando erros e ensejando as ações consideradas virtuosas. Onde existe tabu, dizia ele, ou seja, onde existe proibição, ali existe o desejo pelo objeto proibido. Ao que poderíamos acrescentar: onde ainda existe a necessidade de relembrar datas de massacre de cunho racista, é porque ali ainda existe desejo racista, ignorância racista, falta de amor racista. Então, como fazer? Fiquemos atentos. Nada está conquistado.

Anos depois do Massacre de Sharpeville, já em 2020, a bandeira antirracista ganha ainda mais força, após o assassinato de George Floyd por policiais nos EUA. Os protestos e discussões que se sucederam corroboram a afirmação de que o racismo ainda é um inimigo a combater em diferentes locais no mundo. No Brasil, temos todos os anos os Amarildos, as Marielles, os Joões Albertos Silveiras (o homem negro espancado até a morte em Porto Alegre no supermercado Carrefour), o menor de idade chicoteado por seguranças no supermercado em São Paulo, e tantos outros que morrem por conta do racismo institucional, escondidos atrás dos autos de resistência, do racismo ambiental contra povos e comunidades quilombolas, do racismo religioso que coloca fogo em terreiros de umbanda e candomblé, e outras inúmeras formas de manifestação do desejo racista, da falta de amor.

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Camille Vieira da Costa é defensora pública e mestre em Direito. Pedro Francisco Marchioro é professor e doutorando em Sociologia.