O tribunal do condado de Fairfax, na Virgínia, lidou com a responsabilidade de instruir um dos processos mais sensíveis e televisionados das últimas décadas: o julgamento da ação proposta por Johnny Depp em face de Amber Heard. O veredito do júri, de forma unânime, foi a favor de Depp e todos os detalhes do caso são conhecidos. Mas o que aconteceria se duas celebridades brasileiras protagonizassem a mesma situação?
Primeiramente, devemos entender o contexto dos crimes que permeiam o caso: Amber acusou Johnny de praticar diversos tipos de violência em âmbito doméstico, tais quais agressão, violência psicológica e abusos de várias naturezas. No Brasil, desde 2006, temos a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que trata das mais variadas formas de violência doméstica e familiar. A lei não cria novos crimes, mas prevê um contexto diferente para crimes que já existem como ameaça, lesão corporal e injúria.
Assim, no Brasil, o indivíduo que responde por acusações similares às de Heard pode receber as penas correspondentes a cada crime, só que nos ditames da Lei Maria da Penha. Dessa forma, o sujeito responderia pelo crime de ameaça, nos termos do artigo 147 do Código Penal, podendo receber uma pena de até seis meses. Também responderia por lesão corporal, que, conforme estabelece o artigo 129 do Código Penal, envolve uma pena de até 12 anos nos casos em que é seguida de morte da vítima.
A Lei Maria da Penha busca amparar vítimas específicas no contexto destes crimes: as mulheres e o seio familiar do agente criminoso. Além disso, a lei prevê a possibilidade de aplicação de medidas protetivas, trazendo maior amparo à vítima. Se Depp estivesse no Brasil, poderia ter sido preso, obrigado a se afastar do lar ou receber outras medidas restritivas.
Em segundo lugar, conforme o caso de Depp e Heard se desenrolou no decorrer dos anos, percebemos que o ator iria se defender das acusações de uma forma simples e objetiva: seria ele a verdadeira vítima, não apenas de abusos, mas de difamação.
Para entendermos melhor esse tópico, devemos relembrar qual é o crime de difamação: previsto no artigo 139, trata-se de um crime contra a honra objetiva, no qual o agente imputa à vítima fato ofensivo à sua reputação. O fato ofensivo – que não é um fato criminoso – deve necessariamente chegar ao conhecimento de terceiros.
No caso em estudo, diversos fatos ofensivos, de fato, foram para o conhecimento de terceiros, por meio de jornais que tiveram alcance mundial. No Brasil, o sujeito que pratica difamação pode responder com uma pena de até um ano de detenção.
Relevante dizer, ainda, que algumas acusações de Heard classificam Depp como autor de lesões corporais. Sendo assim, por se tratar de fato criminoso, crime de lesão corporal, Amber poderia responder no Brasil pelo crime de calúnia, nos moldes do artigo 138, e receber uma pena de até dois anos de detenção.
Importante falarmos brevemente sobre o juízo competente para julgar o caso. Na Virgínia, que tem um Código Penal e de Processo Penal absolutamente diferente do brasileiro, o caso foi julgado por um tribunal do júri. No Brasil, no entanto, casos envolvendo crimes como calúnia, difamação e até mesmo lesão corporal são julgados por juízes singulares. E quais crimes vão para o plenário do júri no Brasil? Crimes dolosos contra a vida e conexos, sendo eles: homicídio, aborto, infanticídio e instigação, induzimento ou auxílio ao suicídio.
Por fim, devemos ressaltar as consequências diretas de um caso midiático como este. Quando Heard publicou os supostos casos de violência, o mundo automaticamente condenou Depp. Seu salário foi reduzido, perdeu diversos papéis e oportunidades de trabalho. Campanhas de cancelamento ferveram nas redes sociais. Tudo isso antes do devido processo para apurar se Amber estava certa em suas acusações.
Em um áudio utilizado no processo, a própria Amber diz: “Diga para o mundo que você, Johnny, foi vítima! Ninguém vai acreditar! Eu sou a mulher”. Atualmente, no Brasil, há um entendimento de que, em casos como esse, apenas a palavra da vítima é suficiente. Cabe ao acusado tentar produzir provas para se defender. E assim, há quem não questione a palavra da vítima. Todavia, não devemos ignorar os fatos: falsas denúncias existem, mas não são a regra.
Johnny Depp questionou a palavra da suposta vítima, e o júri entendeu que ela mentia. Os danos contra Depp foram incalculáveis e o júri acabou condenando Heard ao pagamento de 15 milhões de dólares, mas provavelmente esse valor não condiz com as consequências, sofrimentos e angústias que alguém passa ao ser acusado falsamente.
A condenação midiática e social é poderosa e perigosa. Daí que surgem as discussões envolvendo a necessidade de “isolar” os jurados, para que não se contaminem com as opiniões sem embasamento da sociedade e da mídia. O caso de Depp é uma verdadeira lição contra o “cancelamento precoce”.
Destacamos, por fim, uma última consequência que pode ser extraída do caso: a deslegitimação de causas e pautas em razão de falsas vítimas. Mulheres são agredidas e violentadas diariamente em seus lares. Inúmeros brasileiros sofrem a todo instante com o racismo, homofobia e outras discriminações. São causas e lutas sérias, que ganham força a cada dia e não poderia ser diferente.
O episódio de Depp x Heard, porém, enfraquece todas as lutas de pessoas que verdadeiramente sofrem e são vítimas. O caso serve de alerta não apenas em razão das consequências daquele que é falsamente acusado, mas, acima de tudo, mostra que as causas terão mais um desafio pela frente: enfrentar as falsas vítimas que deslegitimam essas questões tão sérias. O direito é aliado nesses enfrentamentos e injustiças, buscando a Justiça, como Depp buscou.
Fabio Soler Fajolli é professor universitário, especialista em Criminologia pela PUC-RS, mestre em Direito Penal pela PUC-SP e advogado criminalista na Pantaleão Sociedade de Advogados.
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