| Foto: Jonathan Campos / Gazeta do Povo / Arquivo
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Fala-se em “educação clássica”, como educação preferida por algumas miríades de pais norte-americanos e brasileiros, para seus filhos. “Clássico” significa: relativo a classe, a escola, ao que se ensina nas escolas; ao modelar, exemplar, merecedor de imitação; o que se relaciona com a antiguidade greco-romana.

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O que alguns chamam, presentemente, “educação clássica” corresponde ao tipo de educação consistente no ensino de dois conjuntos de matérias: o trivium ou trívio (lógica, gramática, retórica) e o quadrivium ou quadrívio (aritmética, música, geometria, astronomia). O primeiro aplicava-se à linguagem; o segundo, ao estudo do número e da matéria; ambos compreendiam as chamadas “artes liberais”, assim adjetivadas porque destinadas ao homem livre e desligadas de fito utilitário ou profissional, em contraste com as “artes mecânicas” (alfaiataria, tecelagem, arquitetura, ensino, mercatura, culinária, metalurgia), típicas de escravos e servos, e de finalidade utilitária.

A geometria incluía a geografia; a astronomia, a física; a gramática, a literatura; a retórica, a história. Este tipo de educação existia já no século 5.º e perdurou até ao 14; foi adotado pela escolástica; no Renascimento persistiu-se no conhecimento da literatura greco-romana e insistiu-se no conhecimento do latim e do grego (o que se chamou “humanidades”). Desdiz dos fatos asserir-se que trívio e quadrívio mantiveram-se como forma corrente de educação até cerca de 200 anos atrás.

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Usualmente emprega-se o qualificativo “clássico” em alusão à cultura grega e romana, com o que não parece assisado atribui-lo à educação respectiva ao trivium e ao quadrivium: será bom chamá-la “formação medieval”, em atenção à fase histórica em que prevaleceu e sem conotação pejorativa; será melhor nomeá-la “educação de artes liberais”.

A educação de artes liberais vem sendo prestigiada nos EUA e no Brasil em resultado de dois fenômenos: a esquerdização do ensino e o declínio da qualidade do ensino. Há vários lustros os ensinos universitários norte-americano e brasileiro, e o brasileiro pré-universitário, são permeados por professores de esquerda, de que vários inculcam seu ideário a seus instruendos, seja a dogmática marxista e anticapitalista, sejam ideias inovadoras (a exemplo dos estudos de gênero e revisionismo em história), o que no Brasil suscitou o malfadado movimento Escola sem Partido, a exaltação do ensino doméstico e, agora, o encômio do ensino de artes liberais, reações, todas três, da parte de quantos antagonizam seja o ensino doutrinário esquerdista.

O setor designado conservador das sociedades brasileira e norte-americana enjeita a esquerdização do ensino em geral; no Brasil, ele também repudia o ensino tacanho voltado apenas à aprovação no vestibular, em que o aluno é treinado para lograr aprovação no dito cujo, e pouco mais. Não se quer ensino doutrinário, mas isento; não se quer ensino massificado nem automatizado, mas edificante, fitos para os quais este mesmo setor busca subtrair seus filhos da influência escolar mediante a educação que lhes seja dispensada pelos pais, domesticamente, e mediante o ensino de artes liberais. Tanto uma quanto o outro não constituem objetivos precípuos de seus aderentes: ambos representam fugas ao tipo de ensino que rejeitam. Não aspiram diretamente ao ensino em casa nem ao de artes liberais em si; aspiram a alternativas ao sistema educacional vigente. Não lhes são objetivos: são-lhes alternativas que mais representam o que repelem do que o que realmente desejam.

Colimar ensino transmissor de conhecimentos sem doutrinação, edificante, que estimule a inteligência e a perspicácia, favoreça a compreensão da sociedade atual e pretérita, cultive bons sentimentos, suscite o esforço, premeie o mérito, são objetivos a que todos podem e devem aspirar.

É meritório o estudo meticuloso do idioma nativo, seja o inglês nos EUA, seja o português entre nós, e sua valorização; mais do que meritório, urge no meio brasileiro dotar o público em geral e estudantes em especial de mentalidade que encareça o vernáculo como elemento da formação da pessoa, como veículo de expressão e como estética na fala e na redação. Neste particular, o trivium pode contribuir para contrariar o espírito de hostilidade à gramática, de desleixo linguístico, de descaso para com o vernáculo, para aperfeiçoar cada um a forma como se expressa (sentido em que os oito primeiros volumes da coleção das Sete Artes Liberais do Instituto Hugo de S. Vítor afiguram-se-me valiosos para quantos se dediquem a tal gênero de estudos). Com trívio ou sem ele, ensine-se gramática, redação e literatura a sério, cultive-se espírito de rigor na fala e escrita, fomente-se o hábito da leitura de bons livros.

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Já o quadrívio abarca aritmética, geometria, música, astronomia. Sem menoscabar tais domínios, não faz sentido fundamentar a formação da pessoa exclusiva ou principalmente neles (e no trívio): outras áreas do saber humano interessam mais do que eles: história geral e nacional, história da arte, geografia, filosofia, sociologia, ciências naturais, antropologia, ciência política, artes plásticas.

Após a fase de fastígio da Igreja Católica e a preponderância do ensino de artes liberais, sobrevieram a revolução científica, o iluminismo, o acréscimo de conhecimento do mundo, novos problemas e mentalidades; o conhecimento humano avolumou-se e ser culto ou instruído em 2021 difere de sê-lo no século 15 e nos que lhe antecederam. Dispomos de mais sociologia, antropologia, psicologia, história, ciência política, literatura, física, química, biologia, sociologia, psicologia, saberes que o homem atual deve conhecer, ainda que também adquira os sete saberes liberais. Estes por si sós serão insuficientes para formar a pessoa atual, ainda que o hajam sido para plasmar o homem de cinco e mais séculos anteriores.

É importante adquirir-se noção das ordens cosmológica e humana, isto é, compreender a que fenômenos (astronômicos, físicos, químicos, biológicos, sociológicos e psicológicos) estão sujeitos os indivíduos, de que forma a natureza condiciona a humanidade e, por outro lado, permite-lhe atuar, sentido em que o ensino de ciências naturais é importante, como teor; como orientação, a educação pode voltar-se a cultivar os bons sentimentos, o espírito de solidariedade, de participação de cada um no meio humano, o respeito para com pessoas, animais, plantas; o senso de gentileza, a concórdia, a valorização da alta cultura e do legado intelectual e artístico do passado humano, o amor do conhecimento: são as diretrizes da educação positivista, tal como a preconizava Augusto Comte, que, aliás, propôs o ensino doméstico, a ser ministrado pelas mães, até certa idade da criança. Antes de os atuais conservadores apregoarem-no, para evitarem a seus filhos a escola esquerdista, o positivismo recomendava-o, fosse como alternativa à carência de ensino público, fosse porque muitas mães poderiam desincumbir-se de tal encargo.

Propagandeia-se a educação de artes liberais como havendo sido a de vultos como Tomás de Aquino, Abelardo, Hugo de S. Vítor. Ora, no período de suas vidas, a instrução superior correspondia à das artes liberais e qualquer indivíduo instruído sê-lo-ia forçosamente nelas: alternativas, não as havia. Em outros períodos históricos, anteriores e posteriores ao deles, com outros critérios de educação, despontaram superioridades humanas, sem haverem se formado no trívio e no quadrívio, que não exprimem a forma por excelência de ensino nem a única. Não será mal que escolas adotem-nos, mas será empobrecedor que os tomem como conteúdo preponderante ou exclusivo de seu ensino.

A consulta de manuais de história da educação permite ao leitor situar a educação de artes liberais no conjunto da história da educação e percebê-la como uma forma de entre outras de educação (veja-se Noções de história da educação, de Teobaldo Santos, e História da educação, de Paul Monroe); e há algum conteúdo do trívio em O trivium, de Miriam Joseph – os três em edições brasileiras.

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Não é desejável que o ensino seja de militantes para formar outros militantes (é a queixa de muitos), tampouco que sua qualidade seja, no Brasil, frustrante em relação ao que seria de esperar.

No Brasil, o Colégio São José e o Instituto Hugo de S. Vítor, católicos, ministram o ensino de artes liberais, o que não será casualidade, por haver ele fundamentado a educação de expoentes medievais do catolicismo, em esforço que parece passadista, medievalizante, arcaizante, até retrógrado.

Exasperados com a presença esquerdista nas escolas brasileiras, mal-dispostos (justificadamente) com o deprimido nível de instrução dos jovens brasileiros em geral e com o ensino dedicado a treinar vestibulandos, alguns, sobretudo (ou exclusivamente?) conservadores, recorrem ao ensino das artes liberais, na ausência de melhor alternativa. Não é desejável que o ensino seja de militantes para formar outros militantes (é a queixa de muitos), tampouco que sua qualidade seja, no Brasil, frustrante em relação ao que seria de esperar (é a observação factual crescente desde 1930). Já tivemos, no Brasil, até cerca de quatro décadas, ensino melhor, escolas melhores, alunos melhores, sem trívio nem quadrívio.

Quer-me parecer que os conservadores (amiúde católicos ou cristãos), angustiados com o quadro escolar que lhes repugna e incapazes de criar soluções para o problema que os confrange, improvisaram uma, por imitação retrógrada: regressam séculos, para a educação da Idade Média, sem a ambiência medieval em que ela existiu, e já dentro de outro estado do conhecimento humano. É como restaurar a escravidão, porque serviu (passe a comparação grosseira).

Os críticos conservadores do estado de coisas educacional no Brasil (e nos EUA) culpam dois indivíduos: João Amós Comênio, bispo tcheco atuante no século 17, porque enfatizasse a educação utilitária, profissional; e (no Brasil) Paulo Freire, cuja pedagogia voltava-se à revolução socialista. Aparentemente, o segundo serve como símbolo do que valoriza a esquerda e do que antagonizam os conservadores; o primeiro talvez esteja a ser indevidamente avaliado.

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Arthur Virmond de Lacerda Neto é mestre em História do Direito e autor de “Herança do direito romano”.