Convido todos a refletirem sobre alguns aspectos que perpassam nosso cotidiano. Igualdade de direitos é quando todos têm direito a algo. Vejamos a metáfora “direito de ter um sapato”. Pronto, então todos receberíamos um sapato número 36 que é o usado pela maioria da população e todos tem seu direito atendido. Certo? Não.O direito de ter um sapado deve atender a principal característica que nos constitui como seres humanos: a diferença. Quando falamos em equidade temos o direito ao sapato, mas do tamanho de nosso pé.
Voltando ainda ao exemplo: vamos considerar que o tamanho do seu pé é 34 ou 38, e você recebeu o sapato 36 porque todos receberam, e como todos puseram o sapato e saíram andando, você também o fez. Não veremos os problemas imediatamente. Não vai doer imediatamente. Mas após algum tempo, as consequências do desrespeito à diferença aparecem. Agora vamos colocar esse paradigma de equidade na educação.
Na educação a concepção de equidade deve prevalecer, mesmo que usemos palavras rebuscadas, que de alguma forma floreiam a essência do que é dito, não podemos desfocar o que é posto. A educação brasileira apresenta avanços significativos, mesmo que ainda receba muitas críticas. Há sem dúvida progressos para atender às demandas da contemporaneidade. Em tempos de respeito à diversidade, só existe uma educação: a inclusiva. Para isso, o Brasil dispõe da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB – Lei 9394/96) e, mais recentemente, da Lei Brasileira de Inclusão (LBI – Lei 13.146/2015), também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Estamos atropelando o desenvolvimento de crianças se desconsideramos a sua particularidade de desenvolvimento
Na LDB, mais especificamente nos artigos 58 e 59, já temos o início do respeito a uma educação que atenda às necessidades de pessoas com diferenças na forma de aprender, não importa se com uma deficiência ou com altas habilidades. Mas, como ela é geral na definição de direitos, surge a LBI, oferecendo um pouco mais de especificidade na demanda de qualidade de vida da pessoa com deficiência. Certamente uma lei pode ser interpretada de muitas formas, porque quem as lê, o faz de uma determinada perspectiva. No entanto algo nessas leis é claro: a equidade de direitos.
O assunto em pauta é o respeito ao direito de permanência por um ano adicional de algumas crianças com deficiência na educação infantil. Ou seja, não é para todas as crianças com deficiência (por exemplo, as com síndrome de Down e autismo tem desenvolvimento muito singular), mas somente para aquelas que por algum motivo estejam com uma defasagem muito grande. Note que não usei a palavra retenção, nem reprovação, até porque isso não se aplica à educação infantil. Entendemos que o termo começa a ser usado a partir do primeiro ano quando a criança passa a ser “aluno”.
Apesar de não estarmos discutindo retenção, é bom esclarecer que concordamos que a retenção ao longo da escolarização traz, em muitos casos, mais prejuízos que benefícios, e que outras estratégias de enfrentamento deveriam ser colocadas em prática para que não precisássemos reter ou reprovar.
Leia também: Inclusão: a lei e a realidade (artigo de Berenice Reis Lessa, publicado em 19 de março de 2017)
Autores conhecidos como Piaget, Vigostski, Wallon, e mais recentemente Bronfrenbrenner, nos permitem ver o desenvolvimento e a aprendizagem interligados e acontecendo a partir da interação com o meio e com os outros. As relações com o contexto modificam a estrutura neurológica de diferentes formas, levando ao desenvolvimento mesmo em casos de uma deficiência intelectual. Já pesquisas recentes, como as de Houzel (2013) e Bartoszeck (2009) apontam que o desenvolvimento do ser humano está vinculado a maturação cerebral, que se inicia dentro do ventre materno e vai até a fase adulta. A neurociência ainda não tem definida uma idade cronológica em que a estrutura e a função do cérebro estão completamente amadurecidas, contudo esta maturação se relaciona com as aprendizagens, e as bases destas são alicerçadas nos primeiros anos de vida e são essenciais para o desenvolvimento humano, apresentando períodos sensíveis, ou seja, períodos em que a aprendizagem de habilidades ou desenvolvimento de aptidões e competências se faz de modo mais facilitado. São as famosas janelas de oportunidades (antes denominados períodos críticos). Nós, nesses períodos, quando expostos a determinados estímulos, temos muito mais facilidade de desenvolver certas habilidades na sua totalidade.
O período da educação infantil é a base para a escolarização. Como na construção de uma casa, os alicerces precisam estar bem preparados e, às vezes, precisamos gastar mais tempo para que estejam sólidos o bastante para evitar abalos futuros. Outro exemplo para entender o que a neurociência diz quando fala em “janelas de oportunidades” é a diferença no aprendizado de uma segunda língua na infância e na vida adulta.
Portanto, estamos atropelando o desenvolvimento de crianças se desconsideramos a sua particularidade de desenvolvimento.
Quais os benefícios da permanência por mais um ano de algumas crianças com um atraso mais significativo no desenvolvimento na educação infantil? Neste período ela está construindo a noção de si mesma e do mundo e as atividades que envolvem mais ludicidade e exploração do meio são fundamentais; ainda não há cobrança de conteúdo específicos de português e matemática; vai trabalhar melhor a noção de espaço e tempo, que é a base para novas aquisições; e, por fim, começa a estabelecer relações sociais e a aprimorar a linguagem.
Quando for para o primeiro ano, ainda com a deficiência, a sua base para novas aquisições estará mais fortalecida, com maior maturidade emocional, e menor diferença entre os demais. Isso facilita as flexibilizações curriculares futuras. Sem falar nos aspectos emocionais que podem se beneficiar do sentimento de competência.
Em países como Portugal isso é permitido a partir de uma reunião entre a família, a escola e os profissionais de saúde. No estado do Paraná, de forma geral, não há nenhuma restrição quanto a isso. No entanto, recentemente, isso vem sido negado pela prefeitura de Curitiba; a nosso ver, sem embasamento teórico ou jurídico. Além disso, no discurso, pode-se dizer que as escolas de ensino fundamental oferecem “todos” os recursos. Mas na prática isso sempre acontece? Melhor garantir na base.
Educação com igualdade ou equidade de direitos? Quando se diz que a lei obriga todas as crianças a ingressarem no primeiro ano, pergunto: quem são todos? Os que usam sapato 36? Ainda, que lei obriga? A lei para quem usa sapato 34 ou 38 (LBI), ou a lei para quem usa 36 (LDB)? Será que existem outros motivos para que essa medida intolerante esteja acontecendo?
Um tempinho a mais na base da construção da casa pode fazer a diferença no futuro.