| Foto: Handout/Auschwitz Museum

Muito se rabiscou nas últimas décadas (e ainda se escreve) sobre a necessidade primordial em recordarmos a Shoah (Holocausto). Atualmente, a “inevitabilidade” de difundir e transmitir este tema aos jovens transformou-se num consenso pedagógico, numa obviedade educativa que ultrapassa a tragédia em si e atinge aspectos universais éticos e morais. Para um entendimento básico e superficial dessa importância (e significância), basta realizar uma simples pesquisa virtual sobre “por que lembrar, ensinar e estudar o Holocausto”, em qualquer idioma. Serão centenas de resultados.

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Porém, é uma tarefa impossível falar sobre qualquer dimensão educativa da Shoah sem contextualizar a formação histórica de sua memória coletiva. A “barbárie à qual toda educação se opõe” a que se referiu Theodor Adorno não faz sentido do ponto de vista pedagógico se retirarmos os elementos “memória”, “identidade” e “história”. É ilógico pensarmos numa transformação automática de todas as lembranças traumáticas do Holocausto numa memória global cultuada e reverenciada tanto na forma de recordação quanto educativa. Nada é automático. A educação é fruto da percepção da nossa própria história.

Para percebermos em que pé estamos, é fundamental entendermos como se deu o início da construção da memória da Shoah. Um processo lento e doloroso ocorreu nos primeiros 30 anos pós-Holocausto até que educadores de todo o mundo passassem a discutir primordialmente sobre a necessidade, os conteúdos e as metodologias de ensino. Nas primeiras décadas, a Shoah foi pautada como um tema unicamente judaico e ao mesmo tempo inexplicável, incompreensível, incomparável, além do limite da compreensão humana. Sua transmissão era, portanto, exclusivamente emocional, mítica, ritualística, quase mística. A visão era particular e massificada, respaldada por números gigantescos e imagens estarrecedoras. A perspectiva era a da morte. Além dos efeitos ainda recentes, o principal responsável pela formação dessa concepção, como destacado pelo sociólogo israelense Uri Ram, foi o próprio (e recém-criado) establishment sionista, preocupado em apropriar-se da memória da Shoah para fins meramente políticos e ideológicos.

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Não se trata apenas de reverenciar os mortos, e sim de usar a tragédia como aprendizado nas nossas vidas hoje

Entretanto, essas mudanças na mentalidade e consciência públicas da Shoah foram conduzidas inegavelmente, a partir de meados dos anos 1970, pelo Yad Vashem e sua relação natural com as universidades israelenses. A proximidade acadêmica do Yad Vashem com esses pesquisadores favoreceu uma ligação, hoje intrínseca, por meio de um pequeno grupo que certamente fundou a estrutura de estudos da Shoah em Israel. Nessa época, o ensino da Shoah ainda não era uma prioridade, ao contrário do arquivo e da biblioteca do museu. O carro-chefe dessa transformação, baseada nos marcos de consolidação da memória coletiva, foram pesquisas profundas de acadêmicos, a maioria deles sobreviventes. Uma figura centralíssima no desenvolvimento de uma Pedagogia do Holocausto foi o professor Yehuda Bauer. Além dele, da Universidade Hebraica de Jerusalém destacam-se os professores Israel Gutman, Avraham Margaliot, David Bankier e Otto Dov Kulka, este autor de Paisagens da Metrópole da Morte. Da Universidade de Tel-Aviv, o professor Uriel Tal; da Universidade de Beer Sheva, o professor Shimon Deadler; e da Universidade de Haifa, o professor Haim Chasky.

As controvérsias, polêmicas e contestações criadas (e muitas delas solucionadas) a partir do fim dos anos 1970 proporcionaram um corpo teórico considerável e consciente dos problemas e virtudes para o ensino do Holocausto no século 21. Um a um, os dilemas relacionados à memória coletiva e à educação têm sido restruturados. Durante a construção dessa nova perspectiva, ancorada sob forte influência sociopolítica e acadêmica, era necessário que as lembranças e as experiências traumáticas deixassem a exclusiva carga emocional e passassem por um processo de reconstrução e remodelação para o formato de memória e, posteriormente, de memória coletiva (primeiro judaica, depois universal). O Holocausto tornou-se, sob o viés educativo, um tema humano e transmissível do ponto de vista histórico – e, consequentemente, explicável e, sim, comparável. Tornou-se uma ferramenta pedagógica poderosa: universal e com uma ótica personificada – não se trata de uma história de milhões de pessoas, e sim milhões de histórias distintas, cada uma com um nome e um sobrenome. A perspectiva passou a ser a da vida.

A universalização do tema e sua consequente transmissão a todos os povos e culturas tornaram-se viáveis após cinco décadas de um processo vagaroso, complexo e cheio de particularidades, porém considerado natural pelos especialistas que lidam com a memória coletiva. O maior desafio é quebrar esses paradigmas dentro das próprias comunidades judaicas, acostumadas à perspectiva clássica de transmissão da Shoah. A resistência ainda é imensa.

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É fundamental resgatarmos o máximo de histórias e as aproximarmos da nova geração, causando empatia, trazendo lições e trabalhando valores, principalmente o da vida (e não da morte). Não se trata apenas de reverenciar os mortos, e sim de usar a tragédia como aprendizado nas nossas vidas hoje. Também não significa ensinar de forma enciclopédica. Significa lutar contra todo e qualquer tipo de ódio, racismo e intolerância por meio de um episódio que deve ser inserido na memória coletiva de todo o planeta. Este deve ser o principal objetivo de qualquer projeto educativo sobre a Shoah: ajudar no processo de construção de uma memória coletiva universal. Significa compreender que essas histórias fazem parte de toda a humanidade, e que não é necessário que eu ou minha família tenhamos passado por isso para concluirmos que faz parte da minha história. Este é o ponto.

A Shoah pode ser um alerta ou um precedente. Temos de trabalhar sempre com a primeira hipótese, que seja um alerta, para que não ocorra novamente. Porém, o simples discurso do “nunca mais” é vazio. Não basta uma vez por ano postarmos em nossas redes sociais que vamos lembrar e nunca esquecer. A história é cíclica, tende a se repetir, e exemplos de genocídios e violações de direitos humanos acontecem todos os dias, muitos deles na nossa frente, em menor escala. Não apenas na África e na Europa. Vemos na rua, em casa, na escola, no estádio de futebol... a Shoah é um exemplo extremo de tudo isso, não por sua dimensão, mas por sua totalidade e globalidade. Mas exemplos menores são vistos diariamente. Parece que nós, a humanidade, não aprendemos nada. Muito se pergunta por que falamos tanto sobre Shoah. A pergunta deve ser invertida: por que falamos tão pouco sobre a Shoah? Devíamos falar mais, até que consigamos aprender. Se aprendermos, viveremos num mundo bem melhor. E aí, sim, não precisaremos mais falar sobre isso. Teremos aprendido as lições. Enquanto isso, essa é a nossa missão.

Carlos Reiss é coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba, única instituição no Brasil que uniu os trabalhos de memória, educação e pesquisa com um projeto museológico permanente sobre a Shoah.