Gostaria que este texto fosse direcionado apenas aos professores e estudantes de Medicina. Porém, se trata de um apelo à sociedade brasileira pós-Covid 19. Hoje, mais do que em outros períodos de nossa história, é difícil pensar em algo mais importante para nossa sobrevivência do que formarmos bons médicos, pesquisadores e profissionais de saúde.
A história da educação médica não tem um início definido, e também não terá um fim. E história é filosofia ensinada pelos exemplos. Se no princípio ela tinha pouca ciência e mais antropologia, filosofia e arte, agora ela tem mais ciência, e sente falta das outras 3. O foco da medicina está mais direcionado às intervenções biológicas do que na compreensão do sofrimento como ele é vivenciado pelo paciente. A falta de compaixão e de empatia tem razões bem estudadas, mas ainda pouco compreendidas. E, na raiz disto, encontramos uma cultura institucional e educacional que promove um entendimento reducionista do cuidado do paciente e da falta de preparo para lidarmos com nossas vulnerabilidades. Medicina não se limita a resolver disfunções biológicas!
Pois bem, aos médicos se espera uma aderência a um sistema ético rígido, e que demanda mais do que a maioria das profissões. Lutamos diariamente para suprimir interesses próprios, às vezes até ao custo do nosso bem-estar e das nossas famílias, e, em tempos de pandemia, até da nossa segurança pessoal. As chamadas “virtudes médicas”, que correspondem à predisposição a fazermos o bem para o paciente e colocá-lo no centro das atenções, estão na base da formação profissional. Por isso, é necessário que o estudante esteja em contato direto com mentores virtuosos, que irão moldar seu caráter, sua maneira de ser e de agir. O professor de Medicina, mesmo em tempos de grandes revoluções, continua sendo um elemento transformador, não apenas do aluno, mas da saúde como um todo.
Por outro lado, a despersonalização da Medicina não é primariamente um problema epistemológico, mas sim ontológico. A preocupação com a cura, mais do que com o cuidado, é um reflexo disso. Ela está relacionada a quem nós somos, enquanto sociedade pós-moderna, e em como nos vemos em face da morte e do sofrimento e pela forma como adoecemos.
Muito se fez em termos de formarmos profissionais prontos a quantificar os resultados objetivos das intervenções sobre a doença, e de medicina baseada em evidências. Muito pouco, por outro lado, temos feito para entender o sentido da doença como ela é vivenciada pelos pacientes. Esta lacuna na formação médica, agora corre o risco de ficar ainda mais acentuada na pós pandemia. E este é o apelo mais importante desta nossa reflexão.
Sabemos que somos um dos países com mais escolas médicas no mundo. Temos 342 em funcionamento, sendo 59% privadas, 35.388 vagas/ano, com uma distribuição geográfica, estrutura física, perfil docente e qualidade de ensino desiguais. Até 2026 teremos mais de 180 mil matrículas. O SUS, onde grande parte da formação dos nossos alunos realiza sua formação, em muitos aspectos, é um mal exemplo de estrutura burocrática engessada e de atendimento inadequado. As escolas médicas públicas e privadas carecem de modelos de gestão e indicadores de qualidade de ensino, pesquisa e assistência que poderiam torna-las mais eficientes. Cultura organizacional conservadora e burocrática, remuneração docente inadequada, limitações nas atividades de pesquisa e extensão, falta de formação em educação médica, em liderança e em gestão, são alguns dos tantos problemas enfrentados.
Até aqui, tudo o que apresentamos não é diferente do que temos discutido em termos de Educação Médica na fase pré-Covid-19. A novidade neste cenário são os efeitos e as consequências da pandemia para a formação dos futuros médicos, e suas implicações para a saúde no Brasil.
Estamos assistindo em algumas instituições privadas de ensino a um desmonte do seu corpo docente, com desligamentos em massa. Além disso, boa parte do ano letivo de 2020 já comprometido. Temos também perspectivas de reduções importantes de investimento nas escolas médicas públicas e privadas, tanto em estrutura física, quanto em contratações, pesquisas, extensão e formação nos próximos anos.
Uma das tantas lições aprendidas com esta pandemia é exatamente a necessidade de priorizarmos a saúde. Estamos iniciando agora a era da telemedicina e da educação à distância. Elas, contudo, não irão substituir o ensino presencial, o contato físico, a relação médico-paciente e a presença do docente como exemplo e mentor. O professor deve estimular valores que são fundamentais na identidade profissional do médico: compaixão, altruísmo, honestidade, integridade e respeito. A qualidade do ensino, que já estava quase à deriva, poderá agora ficar ainda mais prejudicada se nada for feito para reverter esta situação.
Ao vivenciar tudo isto, fico com a mesma sensação do Totó, no final do filme Cinema Paradiso. Ao retornar para sua cidade natal 30 anos depois, assiste à implosão do Nuovo Cinema Paradiso, que seria transformado em um estacionamento. Sim, em um estacionamento. O palco de tantas alegrias e sonhos. Ele, já um cineasta famoso, maior do que o cinema da sua infância, ali parado, sem poder fazer nada para mudar o que estava acontecendo. Uma das cenas mais melancólicas da sétima arte.
Vimos tantos movimentos de gratidão nas redes sociais aos profissionais de saúde neste período. Está na hora deste sentimento se transformar em ações. O futuro da educação médica é o futuro da saúde. E também, da nossa sobrevivência pós Covid-19.
Cicero Urban é médico mastologista e professor de Bioética e de Metodologia Científica. Vice-Presidente do Instituto Ciência e Fé em Curitiba.
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