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Em recente conversa com o vice-reitor de uma universidade paulista, expus minha preocupação sobre os rumos de linhas pedagógicas que só “preparam para o mercado de trabalho” ou “garantem a futura empregabilidade do aluno”. Fiquei estarrecido quando ele me respondeu que essa visão acadêmica não é só um “privilégio” do mundo do direito. Segundo ele, a colonização foi praticamente completa: “educa-se” para o mercado de trabalho e não para o mundo do trabalho.
Esse é o quadro do cenário educacional que contemplamos hoje. Os alunos são clientes, os diplomas são comprados em prestações mensais e as metodologias de avaliação são típicas de um sistema de produção toyotista. A eficaz máquina educativa inunda o mundo profissional de analfabetos diplomados e convivemos com eles nas mais diversas relações sociais.
É preciso que cada professor volte a conduzir para fora – ex ducere – o que há de melhor em cada aluno seu.
No fundo, penso que essa máquina parte de uma pobre visão antropológica que oscila entre o Homo consumens e o símio evoluído: esse busca a redenção existencial pela técnica, enquanto aquele satisfaz sua curiosidade e se diverte contra a angústia de uma vida sem sentido. De fato, a julgar pelo nível dessa premissa antropológica, a educação, sobretudo a de nível superior, não pode ser muito diferente: os frutos jamais caem longe da árvore.
Contudo, mesmo diante desse quadro pouco animador, veio à minha mão uma recente pesquisa pedagógica muito rica e diversificada, o Educo Barômetro. Esse retrato pedagógico docente, que aborda aspectos como as motivações que levaram o profissional a dedicar-se à docência, o desenvolvimento no âmbito acadêmico, o estado de ânimo como profissional da área, o nível de satisfação com a profissão, as condições de trabalho, entre outros, trouxe uma feliz constatação empírica: o gosto dos profissionais docentes pela docência, ainda que o duro chão da realidade escolar não conspire lá muito a favor disso em muitos âmbitos.
A pesquisa, realizada em 2023, contou, no Brasil, com 600 entrevistas presenciais feitas com professores das redes de educação infantil, do ensino fundamental/médio e superior. A amostra teve como base o Censo Escolar do INEP, abrangendo as cinco regiões do país, agrupadas por unidades federativas – Sul, Sudeste, Norte, Nordeste e Centro-Oeste – e a metodologia contemplou a distribuição proporcional de amostra para cada região, com 120 estabelecimentos de ensino selecionados no total. Para cada instituição, foram realizadas cinco entrevistas com professores, escolhidos de forma aleatória. Em suma, um recorte investigativo realizado de maneira muito séria e científica.
O que mais impressiona na pesquisa é que, além do gosto profissional, o corpo docente continua fortemente identificado com as dimensões mais vocacionais da profissão, sobretudo no perfil feminino. E, enquanto lia a pesquisa, veio à mente uma maneira de conciliar esse feliz resultado com uma sugestão de estímulo futuriço no seio do quadro do cenário educacional descrito lá na introdução destas linhas. Não precisamos ir muito longe. Basta embeber-nos da seiva da raiz etimológica de “educação”: do latim, ex ducere, conduzir para fora.
Os gregos transformaram a educação na própria razão de ser de seu povo. A Academia e o Liceu foram o modelo de uma escola autêntica: a famosa paideia, o cultivo pedagógico do espírito. O assenhoramento da universalidade do conhecimento da época pelos mestres da filosofia levou o grego médio a frequentar escolas naturalmente. Aliás, em razão do cultivo do saber e da busca da sabedoria, os gregos só poderiam valorizar altamente a educação.
Depois da Grécia, a educação passou a ser vista como fonte de fortalecimento dos povos. Floresceu e democratizou-se com o espírito prático dos romanos até a queda do folde ocidental do império, quando a Igreja assumiu sua função de educadora ao civilizar os povos bárbaros e, alguns séculos depois, fomentou a criação da universidade medieval, legado precioso que perdura até hoje e um dos pilares do mundo ocidental.
Com o advento do Estado moderno, cada nação tratou de por seus olhos na formação de suas gerações por meio da educação, desde a mais elementar até a mais especializada, restando, muitas vezes, a impressão de que o homem estaria no vestibular da plena conquista do universo, cuja aprovação dependeria do domínio e do controle de suas próprias contradições e tendências menos dignas de uma natureza debilitada, a partir de um exclusivo e autossuficiente saber-fazer.
No entanto, o risco de aprovação diminuiu muito – ainda que houvesse algum, sobretudo para a fé cega do time dos racionalistas e cientificistas –, porque, naquele afã, vieram junto a racionalidade instrumental, o utilitarismo prático e o horror metafísico, o que torna, hoje, ainda mais importante uma profunda reflexão sobre o papel da cultura na educação. A cultura é sempre a irrupção do atemporal no meio do tempo. É o vínculo que une, democraticamente, os mortos, nós, que vivemos neste vale de lágrimas e as gerações futuras. É o presente das “coisas permanentes” que se fundamenta num passado e se projeta para um futuro, tudo ao mesmo tempo aqui e agora.
Cultura vem do latim colere, que significa também cuidar. Algo que se relaciona com a natureza e o cultivo da terra e não com uma linha de produção, seja taylorista ou toyotista. É uma operação que consiste em cuidar do espaço, liberar os recursos do crescimento de uma pessoa – com nome e sobrenome – e permitir a frutificação da plenitude de um ser humano. Por isso, uma vivência cultural lembra mais o trato da terra e não o chão de fábrica. Tem um poema chinês que diz, mais ou menos assim, que o chão de fábrica mais lembra um contrapiso de canteiro de obra: ele é útil, porque serve para o vai-e-vem, e é inútil, porque não serve para nada mais além disso.
Educar é, pois, cultivar e não manufaturar. Respeitar os ritmos das colheitas e das estações dos indivíduos. Trato esmerado. Não é produção em série. Contudo, educar entranha um risco: o risco da liberdade humana. É o único caminho, porque uma educação sem risco vira adestramento, algo em que a maioria das instituições de ensino concorrem umas com as outras. Diria até que, em alguns casos, o puro “educar” para o mercado de trabalho chega a ser tão eficaz que o aluno logo consegue um emprego, ainda que, depois de uns cinco anos, ele venha necessitar de uma “reciclagem profissional”. E por quê?
Cinco anos depois, todo aquele conhecimento da graduação não tem muito mais serventia e começa a maratona de sucessivos cursos dos mais diferentes tipos, a fim de o ex-aluno se tornar cada vez mais empregável, visando escapar da condição de excluído existencial. Afinal, ele foi adestrado para o mercado de trabalho. Se tivesse sido educado para o mundo do trabalho, muito dificilmente precisaria daquela maratona pedagógica. A modernidade pedagógica propôs fazer uma educação como linha de produção automotiva. A pós-modernidade pedagógica propõe a falsa transcendência do mercado de trabalho. No primeiro caso, sonhávamos com um homem massificado. No segundo, sonhamos com algo pior: um homem sem o humano.
Diante dessa perspectiva, creio que os resultados da pesquisa Educo Barômetro, mormente relativos aos dados identificados com as dimensões mais vocacionais da profissão docente, clamam por um profundo resgate paideico de nossa atualidade pedagógica, salvo se ainda quisermos povoar o mercado de trabalho com símios evoluídos. É preciso que cada professor volte a conduzir para fora – ex ducere – o que há de melhor em cada aluno seu.
André Gonçalves Fernandes, Ph.D., é juiz de Direito, pesquisador em Educação pela UNICAMP, professor da Academia Atlântico e do CEU LAW Schoole membro da Academia Campinense de Letras.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos