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Opinião do dia 1

El Comandante

Com a doença de Fidel Castro e seu afastamento (temporário?) do poder, a pergunta é inevitável: que virá depois? Mas há uma outra pergunta que não pode calar nos espíritos minimamente inquisitivos: que ficará da obra do Comandante?

Durante muito tempo, parecia que o destino de Fidel Castro era guiado pela máxima de Ortega y Gasset: "eu sou eu e as minhas circunstâncias". O "eu" era um espírito audacioso, inquieto, preocupado com a pobreza de seu povo e o abastardamento moral da ilha, entregue como botim à máfia americana que a havia transformado em um grande bordel ao longo da primeira metade do século XX. As "circunstâncias" eram o resultado de uma política míope dos ianques, típica da guerra fria, que preferia eternizar situações de absoluta iniqüidade em nome de seus interesses mais imediatos. Fidel Castro teria sido, assim, jogado nos braços do comunismo pela própria tacanhice política dos americanos que se recusavam a aceitar qualquer alteração das estruturas sociais cubanas e dessa infelicidade histórica teria resultado uma economia em frangalhos e um estado de pobreza crônica.

Passados 46 anos, essa explicação não serve mais, nem convence mesmo os mais crédulos. Para começar, Cuba tem uma população pouco maior que a do Paraná e uma área geográfica igual à metade do nosso estado. Portanto, não estamos falando de um país gigantesco, cheio de complexidades geográficas e humanas e sim de um país pequeno, com uma população pequena. Complicações políticas? Muito poucas pois o regime é de uma clareza luminar: é totalitário e ponto final.

A hostilidade americana a Cuba é um fato que nos dias de hoje tem um ar de absoluto anacronismo e está tão distanciado da realidade quanto os carros dos anos 50, que fazem a delícia dos turistas e dos fotógrafos em Havana. Depois que a ilha perdeu todos os vestígios de sua importância estratégica, que era devida pura e simplesmente à sua posição geográfica do lado da Flórida, a hostilidade é muito mais alimentada pelo desejo dos políticos norte-americanos de bajular os cubanos de Miami do que por qualquer teoria geopolítica digna desse nome. A explicação é fácil: no sistema político dos Estados Unidos, a eleição para a presidência é realizada por um colégio de representantes dos estados e não pelo voto direto. O sistema permite que um candidato ganhe a eleição popular geral no país – como aconteceu com Al Gore na primeira eleição de George W. Bush – e não seja eleito porque não conseguiu ganhar em um estado que detenha um grande número de votos eleitorais no tal colégio, como é o caso da Flórida. Bush ganhou a eleição nesse estado com menos de 1.200 votos de diferença e com isso arrebatou todos os votos eleitorais. Se Gore tivesse tido mais 700 votos, teria batido Bush na Flórida e sido eleito. Em outras palavras, uma eleição de mais de cem milhões de votos decidida por algumas centenas deles. Não é de estranhar que os cubanos de Miami sejam mimados pelos políticos americanos.

Mas sejamos práticos. Essa hostilidade americana teria sido capaz de sufocar a ilha por 50 anos? Cuba sempre teve amigos poderosos, a começar pela União Soviética, enquanto existiu, e pela Europa, com a França à frente, que sempre adorou se colocar no papel de enfant térrible divergindo dos Estados Unidos em relação a tudo e a todos. Será que esses amigos nunca foram capazes de dar ao país o pouco oxigênio de que necessitava investindo nele? Ou será que foi o regime de Fidel, coletivista, burocrático, burro e totalitário que simplesmente se mostrou incapaz de transformar uma pequena ilha em uma economia minimamente produtiva e auto-suficiente?

Cuba conseguiu montar um sistema de saúde decente, embora longe das maravilhas curativas que algumas mentes mais ingênuas fantasiam. A educação básica também é um sucesso e a população cubana é alfabetizada e relativamente instruída para os padrões de Terceiro Mundo. Mas isso não é pouco para quase meio século de pobreza e opressão? Para se dar educação e saúde de massa à população não é necessário submetê-la a um regime político totalitário como o cubano – e o mundo está cheio de exemplos disso. Para não falar na Europa que fez isso nos séculos XVII e XIX, vamos nos fixar na Costa Rica, um país latino americano. Na Costa Rica, os níveis de educação básica são semelhantes aos cubanos, a mortalidade infantil e a expectativa de vida ao nascer também, o colchão de proteção social é até maior e a renda per capita é três vezes superior à de Cuba. Ah, e o presidente e a Assembléia Nacional são monótona e democraticamente eleitos a cada quatro anos...

Amartya Sen, o economista indiano ganhador do Prêmio Nobel de Economia e insuspeito de nutrir paixões americanófilas, definiu o processo de desenvolvimento como uma sucessão de libertações. Para Sen, "o desenvolvimento requer a remoção das maiores fontes da falta de liberdade: a pobreza e a tirania, a limitação das oportunidades e a sistemática privação social; a negligência com os serviços públicos e a hiperatividade dos regimes repressivos". Sejamos francos: em nenhum desses aspectos a herança do Comandante deixará saudades para qualquer detentor de dois neurônios em bom estado.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do mestrado da FAE Business School.

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