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Letícia saiu com quatro amigas para tomar um drinque. Em meio a selfies e sorrisos, o vírus da Covid-19 adentrou em seu organismo no exato momento em que ela deu um gole em sua bebida. Às 21h01, a jovem envia uma mensagem para o pai. “Pai, vem me buscar?”, ela digita. “Estou indo”, responde o pai, exatamente às 21h02. Letícia entra no carro e, feliz ao vê-lo, lhe dá um beijo no rosto. Monstrinhos verdes saem de seus lábios, contaminando-o instantaneamente com o coronavírus. Algum tempo depois, o pai de Letícia é internado numa UTI, começa a respirar por aparelhos e Letícia é vista correndo pelos corredores do hospital, clamando pelo homem que ama e que ajudou a matar.
O enredo acima pode ser visto em um dos mais recentes comerciais de tevê produzidos pelo governo de São Paulo. Uma peça publicitária que possivelmente encheria Joseph Goebbels de orgulho.
A mescla de desonestidade intelectual, falácias e melodrama barato (tudo isso embalado pela canalhice, boa e velha amiga da publicidade estatal) é ilustrada pelo texto do narrador do vídeo. “Hoje, Letícia vai ser contaminada pelo coronavírus”, anuncia ele nos primeiros segundos da peça, ignorando que, no mundo real, nenhum ser humano jamais será capaz de afirmar com precisão o exato momento em que contraiu o vírus chinês.
Fale-nos mais sobre Letícia, narrador. Estamos curiosos. Ela estava isolada em casa por mais de 370 dias antes desta saidinha com as amigas? Será que ela não foi contaminada em algum trem lotado? Ela não precisou pegar nenhum ônibus abarrotado nos últimos meses? Ou, pensando bem, será que o fato de haver um vírus circulando pela atmosfera de todo o planeta Terra e contaminando pessoas indiscriminadamente não tem algo a ver com isso?
Tragédia e comédia se abraçam nos pequenos detalhes certamente idealizados por algum publicitário que – sob pena de parecer incoerente – deve ter roteirizado, gravado e dirigido o vídeo diretamente de um bunker, embebido em álcool 70 e usando máscara. Um dos detalhes, por exemplo, é o horário em que Letícia se comunica com o pai: 21h01.
Puxa, Letícia, se fosse um minuto a menos, ele não teria morrido! Se você respeitasse os decretos que proíbem os restaurantes de permanecerem abertos depois das 21 horas, a Covid-19 teria ido atrás do pai da sua vizinha negacionista. Como você pôde ser tão tola? Todos sabem que a ciência já provou que aglomerações após às 21 horas são fatais e que a pontualidade do vírus não é chinesa, mas inglesa.
Ousado, o locutor do VT parece não temer embrulhar estômagos e, enquanto Letícia beija o pai no rosto, ele declara: “Ela não sabe, mas está passando o vírus para a pessoa que mais ama”.
Pausa dramática.
Vivemos para ver a criminalização do afeto entre pai e filha. Novamente, o espectador é levado a crer que naquele beijo residia a morte. No entanto, não nos é revelado se o pai de Letícia já precisou ir ao supermercado, à farmácia ou simplesmente trabalhar para garantir o pão de cada dia e, quem sabe, pagar a faculdade da filha. A não ser que ele fosse funcionário público, ator global ou YouTuber, ele deve ter tido milhões de oportunidades de contrair o vírus ao longo do último ano. Teria sido o beijo de Letícia o verdadeiro vilão? Não custa tentar mais uma vez: será que o fato de haver um vírus circulando pela atmosfera de todo o planeta Terra e contaminando pessoas indiscriminadamente não tem algo a ver com isso? De acordo com o governo de São Paulo, não. A culpa é de Letícia mesmo.
Ainda assim, estes personagens nos trazem algumas reflexões filosóficas que não puderam ser respondidas por um comercial de tevê custeado com dinheiro público. Vamos a elas.
Por que Letícia saiu naquela noite? Talvez ela seja uma terraplanista ou, quem sabe, simplesmente precisasse espairecer um pouco para não figurar entre os milhões de novos casos de suicídio, depressão, síndrome do pânico e afins. Talvez ela tenha conquistado algo – uma promoção no trabalho, o fim de um relacionamento abusivo ou uma boa nota numa prova particularmente difícil – e desejasse apenas comemorar. Ou talvez (só talvez, narrador) ela estivesse exercendo o seu direito de mulher adulta, lúcida e pagadora de impostos, de ir e vir a locais legalizados por livre e espontânea vontade, ciente dos riscos.
O fato de ela e mais quatro amigas serem consideradas uma “aglomeração” não pode passar em branco. Preocupo-me com as milhões de famílias brasileiras com mais de quatro membros. Ora, ouvi dizer que muitas delas vivem em um espaço com dois cômodos. Elas estão aglomerando há milênios. Alguém precisa alertá-las! Espero que o publicitário do bunker leia este texto e prepare o próximo episódio da série sobre o cotidiano mortal.
Por fim, debrucemo-nos sobre o pai assassinado pelo beijo. Será que, mesmo discordando do fato de a filha sair, ele não preferia ir buscá-la para garantir sua segurança? Há bandidos que não respeitam o isolamento social e poderiam assaltá-la no caminho para casa. Talvez, mesmo sabendo que qualquer contato físico deveria ser evitado, aquele pai preferisse receber um beijo carinhoso, gesto cada vez mais raro entre nossos jovens. Ouso dizer, sob pena de ser execrado, que é possível que, mesmo consciente de que morreria, aquele pai escolhesse exercer o seu direito de proteger, amar e cuidar de sua filha até o último instante.
Pois, por mais que muitos pareçam não entender, há momentos que valem a vida. Há beijos pelos quais vale a pena correr o risco. Há amores mais fortes do que a morte. E há também as coisas simples e pueris das quais alguns não estão dispostos a abrir mão, pois sem elas se sentiriam mortos.
O comercial se encerra com uma frase icônica: “Não brinque com a sua vida”. Quanto a isso, fique tranquilo, governo. Sabemos que esta prerrogativa é sua. Fique à vontade para manter a exclusividade nesta concessão. Afinal, monopolizar virtudes e matar em nome da vida tem sido a sua especialidade há séculos, não é mesmo?
Arthur Vivaqua é pastor, teólogo e consultor de estratégia e marketing aplicados à educação.