A pandemia de Covid-19 trouxe luz para o que deveríamos constantemente lembrar: a realidade – tal como é – sempre está a reclamar do direito e da política algum grau de transformação e adaptação de sentido. A despeito das inúmeras incertezas que o momento traz, há um fato certo: o cenário pandêmico mostrou - de uma vez por todas – que jamais estaremos imunes à interferência da realidade do mundo material na ordem jurídica, política e econômica. Até porque, o direito – enquanto espaço de normatização da vida – não é por si; é em razão da necessidade de apreensão da realidade para conformá-la nas regras do jogo, de modo a conferir segurança, previsibilidade e, claro, estabilidade – seja na esfera pública ou privada.
Bem por isso que, embora, no começo da pandemia – quando ainda não era possível fazer um adequado prognóstico do cenário brasileiro – a maioria dos estudiosos do Direito Eleitoral defendesse que o debate acerca de eventual adiamento do pleito municipal fosse prematuro, é certo que, ante a complexidade e sofisticação dos atos preparatórios de competência da Justiça Eleitoral (a exemplo da testagem das urnas eletrônicas, convocação e treinamento de mesários e da requisição de servidores de outros órgãos), a prudência estava a exigir a consideração da hipótese de adiamento e o amadurecimento da ideia por meio de amplo debate, sobretudo com especialistas da saúde. Daí o equívoco na defesa de que a discussão era precoce.
O desafio, portanto, residia no equacionamento da preservação da saúde pública com a viabilização das eleições municipais, ainda em 2020, para fins de evitar prorrogação de mandatos – alternativa que seria claramente inconstitucional. Nesse sentido, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luis Roberto Barroso, provocou o diálogo com o Congresso Nacional, que, assim como o TSE, também formou grupo de trabalho para tratar da temática, e, em conjunto, essas instituições – de modo exemplar - realizaram uma série de audiências públicas com a finalidade de colher as opiniões de especialistas e entidades. Após todo esse processo de maturação das sugestões e do texto elaborado a várias mãos, sobreveio a Emenda Constitucional 107/2020.
Além de adiar o primeiro turno do pleito municipal para 15 de novembro e, onde houver segundo turno, para 29 de novembro, essa emenda possui diversos pontos positivos, tais como: a) a despeito de alterar datas, não altera os prazos, de forma que as novas datas respeitaram o espaço de tempo do calendário original, mas tendo como referência o dia 15 de novembro; b) em homenagem à segurança jurídica, os prazos já vencidos ficam superados (a exemplo da filiação partidária e algumas espécies de desincompatibilização); c) para que os eleitos tenham condições de tomar posse em janeiro, a diplomação deve ser feita até 18 de dezembro; d) para evitar oportunismos, nos municípios, só poderá haver limitação da propaganda eleitoral se essa exigência estiver amparada por parecer técnico de autoridade estadual ou nacional; e) há expressa autorização para a realização de publicidade institucional, no segundo semestre de 2020, com a finalidade de enfrentamento da pandemia e à orientação da população quanto a serviços públicos e a outros temas afetados pela pandemia - resguardada a possibilidade de apuração de eventual conduta abusiva; e, ainda, f) já consta a previsão de que, se, em determinada localidade não for possível viabilizar o pleito em razão da crise sanitária, o Congresso Nacional, por solicitação do TSE, editará decreto legislativo para fins de designar nova data para a realização do pleito. No mais, não é demais lembrar que essa emenda constitucional é válida tão somente para este ano, por isso mesmo é que consta no ato das disposições constitucionais transitórias.
Em meio a tantas decisões equivocadas tomadas no Brasil, devemos nos orgulhar deste processo de deliberação. TSE e Congresso Nacional mostraram que estão prontos a operar mudanças diante da intrusão do mundo real. Já dizia Machado de Assis: “não bastam esperanças, a realidade é sempre urgente”.
Ana Carolina de Camargo Clève é presidente do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (Iprade). Mestre em Ciência Política pela UFPR. Advogada na áreas de Direito Constitucional, Administrativo e Eleitoral.
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