| Foto: José Varella/Agência Estado

Imagino uma esfinge colocada sobre cada urna eletrônica. Tipo um pinguim de geladeira. Ao eleitor, ela perguntaria: “Passado, presente ou futuro?”

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Quase todos responderiam “futuro”. Afinal, estamos condicionados a pensar dessa forma. O marketing político é assim mesmo: procura nos convencer de que vivemos no país mais horrível do mundo (dizem os oposicionistas), ou então que este é um lugar maravilhoso e pode ficar melhor ainda (dizem os marqueteiros do governo). Oposição e situação têm isso em comum: querem nos vender um futuro melhor, partindo do zero como se o passado não existisse ou fosse irrelevante. O mundo recomeça a cada quatro anos: quem sabe dessa vez funciona?

A esfinge, cada vez que ouve “futuro”, faz um muxoxo e dá de ombros com um sorriso irônico. Deixa todos passarem. Está cansada, sabe que não representa mais nada e que vai longe o tempo dos enigmas.

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Mas será que não é o caso de desconfiar do futuro? O futuro é intangível, imprevisível, sujeito a hecatombes, traições, erros ou simplesmente azar. Não temos domínio sobre ele, e apostar tudo ou nada na promessa de tempos melhores é uma loteria.

Quanto ao presente, ele é só o instante de apertar o botão da urna: torna-se imediatamente passado quando acabamos de carimbar os próximos quatro anos. Para piorar, nessa hora estamos enfurecidos pelos rumos do país e agimos por impulso de descontentamento. O presente deveria ser uma ponte entre o conhecimento e os desejos.

O mundo recomeça a cada quatro anos: quem sabe dessa vez funciona?

Se o desejo está no futuro, o lugar do conhecimento é o passado, que está nos livros, nos debates e reflexões. O resto é mistificação feita para nos enganar.

Dizem que o maior truque do diabo foi o de nos convencer que ele não existe. Os piores políticos agem da mesma forma, fazendo-nos acreditar que política é coisa enfadonha e contaminada. Enquanto pensarmos assim, quem lucra é o diabo.

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Em um jornal televisivo, um dos comentaristas convidados disse, de forma lacônica, que o cidadão comum não quer saber de debates ou reflexões morais porque é oprimido, trabalha como um condenado, tem problemas demais e não quer saber dessas coisas. O problema é que o comentarista não colocou isso como algo a ser superado. Foi quase agressivo, como se defendesse que o mundo é assim e para sempre continuará dessa forma, e quem pensa o contrário é chato ou tolo.

Esse tipo de pensamento é exatamente aquele que interessa aos maus políticos. Seja na carreira de um jovem recém-formado, seja na posição de classe ou de grupo social: as conquistas não caem do céu. De fato, o cidadão mais pobre não quer saber de reflexões porque é oprimido. Porém, defender que ele continue assim é a receita certa para que ele se torne ainda mais oprimido, cada vez mais pobre e afastado da política, até que sua vida atinga as raias do insuportável. Sem reação, só há ação. Do lado que for.

Enquanto isso, quanto mais o diabo nos afasta das paixões pela política, cinco pessoas concentram metade da riqueza do país. E continuamos achando que política é ruim! Os demônios são habilidosos!

Do mesmo autor: O Brasil e a sua inaptidão para os livros (publicado em 1.º de julho de 2018)

Leia também: O presidente de que o Brasil precisa (artigo de Edson José Ramon, publicado em 12 de junho de 2018)

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O mundo neoliberal que enredou o pós-moderno ignora o passado, a reflexão e a cultura. Promove o particularismo de grupos que adotam (sem ter noção disso) uma forma de ação que estimula a divisão, o ódio e o debate burro. Os valores universais não valem nada. Ficamos assim: os pobres não querem nem saber, enquanto os grupos organizados adotam sem saber a receita neoliberal. Quem está adorando essa história são aqueles cinco trilionários.

A política poderia ser tão apaixonante quanto o futebol (sem os espetáculos de selvageria, é claro). Importa pouco se um jovem irá votar pensando em segurança pública, saúde, educação ou uma revolução institucional. Importa muito é que ele tenha acervo e defesas, e não seja enganado pelos que falam sobre segurança, saúde, educação ou revoluções.

Sim, somos uma terra fértil em embustes e equívocos, mas temos também coisas fantásticas para refletir. Será que nos lembramos que já tivemos um presidente negro, filho de um padeiro? Foi abolicionista, mas escondeu suas origens? De qualquer forma, 100 anos depois, como foi que chegamos até aqui? Quem disse que o progresso é inevitável? E que, há não muito tempo, na maior cidade do país, a candidata mais inverossímil do mundo, uma nordestina atarracada, foi eleita prefeita? E que foi uma das poucas que saiu ilesa após tomar conta de um dos maiores orçamentos do país?

Alguém lembra de um debate na televisão em que um candidato defendeu que exames de DNA poderiam definir humanos de raça branca e negra (raça? O que viria depois? Colocar em cada cidadão uma argolinha do Ibama?). O tal candidato foi interrompido por outro, que explicou para ele o que significava “autodeclaração”. Sim, o diabo – essa é outra de suas habilidades – está nos detalhes. No início é o verbo, mas se segura depois...

O presente deveria ser uma ponte entre o conhecimento e os desejos

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E o que dizer de governantes que, assolados por escândalos ou crises, se julgam sucessores de Vargas? Em nossa orfandade de pais fundadores, pretendem reencarnar o salvador da pátria, o pai dos pobres, o pai dos povos, no pior exemplo que poderiam tomar emprestado. Prestam um enorme serviço à ignorância em nome de sua ambição pessoal: querem vestir a fantasia remendada de um carneiro que ocultava o lobo feroz e torturador do Estado Novo. Em um dos grandes livros de quem viveu a época – Minha razão de viver, de Samuel Wainer –, o autor confessou que levava propina para a mãe dos ricos. Infelizmente, o livro está fora de catálogo, enquanto vamos ressuscitando a cada quatro anos novos discípulos da infâmia.

Olhar o passado, confrontar nossas feridas e reconhecer nossos méritos: o local desse encontro é a escola pública e está nos livros, pois, quando não temos história, a mistificação assedia aqueles que infelizmente não têm defesa intelectual. A escola pública e os livros são nossa única defesa, a última linha de defesa. Não é sem esforço e renúncias que isso acontece. Mas é necessário. Heróis serão destronados e certezas serão abaladas. Melhor assim do que acreditar cegamente naqueles que sonegam o passado para vender o futuro.

Eduardo Galeano, na trilogia Memória do Fogo, cutuca nossas feridas e lembra pequenos e grandes feitos, infames ou maravilhosos, mas nos faz lembrar a todo momento. Ainda que caiam máscaras, ainda que seja revelado aquilo que para alguns seria mais conveniente esquecer.

Roosevelt Colini é escritor.