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Imagem ilustrativa.| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

As crises têm o poder de canalizar nossa atenção. E não há falta delas, agora, no país. A inesperada crise de saúde que nos atingiu no início do ano trouxe de volta uma crise econômica da qual mal tínhamos nos livrado e reabriu feridas de uma crise política que ainda não tinha cicatrizado. Para quem acha pouco, temos ainda uma crise ambiental que literalmente ressurgiu das cinzas.

Em geral, o foco numa situação de perigo é uma defesa natural, comum a qualquer organismo vivo. Ante a percepção de uma ameaça, precisamos escolher com urgência uma estratégia para sobreviver: fuga, luta, camuflagem. Todo o resto se torna secundário.

No caso das próximas eleições municipais, no entanto, o foco exclusivo na crise pode ser o proverbial remédio pior que a doença. Não é que as questões levantadas pela pandemia não sejam importantes nem urgentes. Elas são uma coisa e outra. Mas centrar nelas toda a energia do processo eleitoral – e dos governos que se seguirão a ele – pode nos fazer perder de vista temas ainda mais significativos para os destinos do país. Temas que também são importantes, também são urgentes e, se devidamente enfrentados, têm o potencial de transformação sistêmica da nossa sociedade.

Estamos falando, basicamente, dos cuidados com a primeira infância, as crianças de zero a 6 anos de idade.

Num país como o Brasil, cheio de carências, é fácil elencar prioridades. Quase tudo é tão necessário para tanta gente que há uma profusão de ações com status de prioritárias. Tanto é que já incorporamos ao linguajar nacional um eufemismo: “esta é a prioridade número um”. Pois bem. Não vamos dizer que a primeira infância é a prioridade número um. Digamos apenas que a primeira infância vem primeiro.

E ela vem primeiro não porque, embora sejam definidas como cidadãos de plenos direitos, as crianças não têm voto (e boa parte das que estão nessa faixa etária ainda nem têm voz). Tampouco é porque as crianças são o grupo mais sensível às restrições de movimento, à perda de estímulos, ao clima de ansiedade decorrente da pandemia. Essas talvez já fossem razões suficientes para lhes dar mais atenção. Mas há outra, mais convincente: a primeira infância é a causa raiz de grande parte das causas prioritárias para a sociedade. Ela é a mãe de todas as políticas públicas.

Pesquisas e mais pesquisas confirmam os desejos manifestos dos brasileiros: melhor educação, mais segurança, saúde, empregos. A atuação na primeira infância encampa todos esses temas. Não como solução emergencial, mas como investimento para ter um impacto duradouro.

Diversos estudos científicos das últimas décadas comprovam que uma primeira infância mais bem cuidada se reflete em mais tempo de escola e melhor formação para as crianças, desde o ensino fundamental até a pós-graduação. Uma formação melhor leva a mais oportunidades de emprego ou empreendedorismo, com um retorno consistentemente maior para a sociedade como um todo. Além disso, o bom desenvolvimento na primeira infância cria pessoas que cuidam melhor de si, e são em média menos propensas ao uso de drogas e à violência, o que acarreta uma grande redução de custo nos sistemas de saúde pública e segurança.

Não é mágica. Os bons resultados das intervenções no início da vida acontecem porque é na primeira infância que se forma a imensa maioria das nossas conexões cerebrais. É o período com a maior janela de oportunidade para formar cidadãos mais produtivos, mais felizes, mais equilibrados, mais gentis.

Não se trata de pensar nas políticas em prol das crianças pequenas como substitutas das outras. A primeira infância não está no mundo do “ou”, está no mundo do “e”. Justamente por esse caráter de transversalidade, de tocar em tantos temas diferentes. Ela não é única, mas é essencial. Vem primeiro.

Por tudo isso, é imprescindível que o tema da primeira infância esteja presente de forma destacada nas campanhas eleitorais, nos planos de governo, no dia a dia dos mandatos daqueles que forem eleitos. Por mais avanços que o Brasil tenha tido no âmbito federal – com exemplos como o Marco Legal da Primeira Infância, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), diversas diretrizes que amparam as crianças pequenas e a própria Constituição –, é nos municípios que as políticas públicas se materializam. É nas cidades que ocorre o acesso ao serviço público, é nelas que trabalham os agentes comunitários, enfermeiros, médicos, assistentes sociais e profissionais da educação. Sem o envolvimento dos municípios, não há como garantir o pleno desenvolvimento dos pequenos.

De certa forma, o tema já estará obrigatoriamente na mesa dos futuros prefeitos, pois a retomada das aulas dentro dos parâmetros de segurança sanitária terá um custo financeiro e organizacional que certamente ecoará em sua gestão. Segundo um levantamento inédito feito pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) para a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a volta das crianças de 1 a 6 anos para a educação infantil ainda este ano pode custar R$ 6 bilhões. A estimativa de gastos feita pelos pesquisadores corresponde a 60 dias letivos. O valor gasto por aluno pode variar de R$ 859 a R$ 1.038 nesse período, conforme o modelo adotado para a volta às aulas, com mais ou menos tempo das crianças na escola.

É crucial, porém, que este problema não afogue as inúmeras outras questões relativas à primeira infância nos municípios. Para ajudar a evitar que isso ocorra, a plataforma Primeira Infância Primeiro reuniu dados de cada um dos 5.570 municípios brasileiros. É uma fotografia da cidade em relação à situação da primeira infância: como estão a saúde, a educação, a segurança e proteção, os programas de cuidados com as crianças, a nutrição. A plataforma tem também nove diretrizes para inserir a primeira infância nos planos de governo, em linhas como promoção do desenvolvimento infantil, da educação, da parentalidade, da saúde.

Queremos trazer luz para os principais problemas que afligem as crianças no Brasil e sugerir caminhos para solucioná-los. Só a partir do entendimento da situação é possível desenhar políticas públicas adequadas para a realidade local. O objetivo é ajudar os gestores a entender o tamanho do desafio e traçar bons planos; ajudar a imprensa e os eleitores em geral a cobrar propostas dos candidatos e fiscalizar seu cumprimento; e ajudar as crianças – especialmente as que estejam em situação de vulnerabilidade – a serem crianças. Plenas. A sociedade inteira lucra com isso.

Mariana Luz é CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.

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