Em uma palestra, há muitos anos, ouvi uma fábula na qual os animais de uma mata se reuniram em assembleia para debater como enfrentar os desafios de um mundo que demasiadamente mudou. Decisão aplaudida por todos: “Vamos fundar uma escola, pois os nossos instintos já são insuficientes para os novos tempos”.
Contratados professores com notório saber, a primeira reunião foi para definir o conteúdo a ser ministrado. Priorizando a sobrevivência, seja pela busca dos alimentos, seja para escapar dos ataques de predadores, decidiram que o mais importante seria aprender a correr, voar, nadar e subir em árvores.
Os primeiros a se matricular foram a raposa, o cachorro, a onça e o pato. Chegaram à escola supermotivados e irmanados; porém, com o decurso dos dias, o entusiasmo se arrefeceu, pois a raposa, embora a primeirona em aulas de corrida com obstáculos e lépida em subir em árvores, tinha baixo desempenho na natação e, toda vez que tentava voar, sua nota era zero. De nada valeram os argumentos da raposa que os seus saltos de cima das árvores para o chão eram um arremedo de um voo. “Não está contemplado na ementa!”, respondeu o professor.
O cachorro tirava boas notas ao correr e nadar, mas era mediano em subir em árvores e, cada vez que tentava voar, se esborrachava no chão. A onça foi a mais brilhante no conjunto em três componentes curriculares – correr, subir em árvores e nadar –, mas também zerou em Matemática, ops, na prova de voo.
Quem foi o único aprovado em todas? O pato, pois era mediano nos quatro componentes. Voava, mas apenas curtas distâncias; corria, mas de forma desengonçada e lenta; seu voo era suficiente apenas para alcançar as árvores mais baixas; e tinha um nado apenas regular, apesar de algum destaque em mergulho. Enfim, não era talentoso em nenhum dos componentes curriculares, mas cumpriu o regulamento.
Essa fábula pode parecer caricata, mas espelha boa parte do nosso atual ensino médio. Todo aluno tem potencialidades e limitações, no contexto do que defende Howard Gardner, professor e psicólogo da Universidade de Harvard, autor da Teoria das Inteligências Múltiplas: “Não existe uma inteligência geral. As inteligências são diferentes e elas podem e devem ser desenvolvidas”.
Assim, é incumbência precípua dos educadores motivar o desenvolvimento dos pontos fortes do discente, de maneira que os saberes escolares não devem ser os únicos a ser valorizados. Mas, assim como na fábula, não é isso que ocorre em nosso atual ensino médio, excessivamente conteudista, afeito a memorizações e hermeticamente dividido em 13 componentes curriculares que pouco ou nada dialogam entre si.
Alguns dos resultados desse cenário: taxas de abandono e reprovação que beiram os 30% no 1.º ano; Ideb de 3,7 (numa escala até 10, que mede a qualidade do ensino-aprendizagem); e seria enfadonho mencionar o desempenho pífio dos nossos estudantes nos principais rankings comparativos entre nações, nos quais pontuamos entre os últimos. Com um pouco de empatia podemos imaginar o martírio, a baixa autoestima e o bullying infigidos aos alunos com baixo desempenho acadêmico em uma ou mais áreas do conhecimento. Até o ministro da Educação questionava em 2016: “Que chances estamos dando aos jovens do ensino médio? Zero!” – ele próprio respondeu.
Mas há motivos para um intenso laivo de otimismo. Com o Novo Ensino Médio (implantado gradativamente a partir de 2022), as habilidades e competências socioemocionais (incluindo Projeto de Vida) passarão a ser estimuladas e a fazer parte de uma matriz curricular com 60% do tempo (de um total de 3 mil horas) dedicados à Formação Geral Básica, comum a todos, e 40% dedicados a cinco Itinerários Formativos, podendo o aluno optar entre Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Sociais ou Formação Técnica e Profissional.
Em especial, este último tem a sedução do ingresso mais rápido no mercado de trabalho ou mesmo de melhorar a capacitação para uma função laboral já exercida. Necessitamos, sim, de colégios que mantenham um bom preparo para o ingresso em universidades mais concorridas, porém é absolutamente necessária a ênfase nos cursos técnicos, que, ao privilegiarem uma aplicação prática, atendem a um expressivo contingente de alunos. No Brasil, apenas 10% dos estudantes – dada a oferta limitada – estão matriculados nessa modalidade, enquanto nos países da OCDE o índice médio é de 40%.
Assim como o pato aprovado na escola de bichos da fábula (que, mesmo mediano em tudo, facilmente pode ter virado ensopado ao deparar-se com o primeiro caçador que adentre àquela mata), nossos jovens enfrentam hoje muitas dificuldades ao concluir – quando conseguem – a educação básica, estando pouco aptos a enfrentar os desafios da vida e do mercado de trabalho. Com o Novo Ensino Médio, há boas perspectivas de termos alunos mais motivados e com suas potencialidades mais bem desenvolvidas, contribuindo para um futuro mais promissor não apenas para o egresso, mas também para nosso país.
E como fica o professor com o Novo Ensino Médio? Será, mais do que nunca, exaltado, porém não mais como um expositor de conteúdos, mas transfigurado em mediador, mentor, motivador. No século 21, com os avanços das tecnologias educacionais – alavancadas em boa parte pela Covid-19 –, em que a informação está ao alcance de um teclado, a escola deve equilibrar as competências e habilidades cognitivas com as socioemocionais.
Jacir J. Venturi, professor e diretor de escolas públicas e privadas, foi professor e/ou gestor da UFPR, PUCPR e Universidade Positivo, e é vice-presidente do Conselho Estadual de Educação do Paraná.
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