Os noticiários da TV mostraram esta semana cenas que já viraram rotina, mas que nem por isso são menos revoltantes: no Rio de Janeiro, os pacientes de hospitais públicos, enfrentando um calor senegalês, somam aos seus padecimentos a falta de ventiladores ou de sistemas de refrigeração mesmo nas áreas mais delicadas como os centros cirúrgicos e as UTIs infantis, onde as janelas são abertas para evitar que os bebês morram de calor, sujeitando-os a morrer da contaminação do ar. No mesmo dia, o noticiário informava que a Prefeitura do Rio estava jubilosa por ter assegurado o apoio da União para a conclusão das obras no autódromo da cidade a tempo de receber os Jogos Pan-Americanos de 2007; para isso, estaria contraindo um empréstimo de cento e tantos milhões de reais. Em português claro, o dinheiro que não existe para tratar os doentes com um mínimo de dignidade, existe para assegurar que os atletas do Pan, com aquela saúde que Nelson Rodrigues classificava como de vaca premiada, desfrutem de um estádio moderníssimo. Na capital da Paraíba, o único centro público de tratamento de câncer não tem condições de atender os doentes e as autoridades tomaram uma decisão esperta: em vez de socorrer o hospital, organizaram uma lista; quando alguém morre ou acaba o tratamento, abre-se vaga para o primeiro da fila. O diretor do hospital, constrangido, reconhece que, para muitos da fila, trata-se de uma virtual condenação à morte, mas que fazer?
Roberto Jefferson não é santo dos meus altares, mas tenho de confessar que tenho algo em comum com ele: algumas pessoas e situações também me despertam os instintos mais primitivos. Como tratar os governantes do Rio que assistem impávidos o sofrimento de seus semelhantes amontoados como animais nos corredores de um hospital, enquanto brindam felizes porque vão fazer um estádio esportivo? Que castigo merecem o governador da Paraíba e o prefeito de João Pessoa que aceitam, de cara limpa, que pacientes de câncer sejam submetidos a uma verdadeira gincana da morte porque não são minimamente competentes nem sensíveis para dotar o único hospital público que os trata de recursos?
Como ando em fase de grande ceticismo em relação à política, acho que encontrei um caminho alternativo promissor. O que a população mais humilde precisa urgentemente é encontrar uma ONG que a proteja. Afinal, se alguém for pego mantendo uma arara azul, um papagaio-do peito-roxo ou um mico-leão-dourado enjaulado a uma temperatura de mais de quarenta graus, os perpetradores dessa crueldade serão imediatamente denunciados pelas ONGs que se ocupam da fauna silvestre e processados por crime ambiental Se as baleia fossem tratadas como os doentes paraibanos de câncer, não tardaria a aparecer o Greenpeace e seus membros se acorrentariam na porta do Ministério da Marinha exigindo providências imediatas e radicais. Não tenho nada contra a ação dessas ONGs que se preocupam em defender a fauna e a flora; tenho apenas inveja de que não tenhamos conseguido sensibilizar a sociedade para estender a mesma preocupação aos humanos. Na primeira vez em que uma ONG começasse a mobilizar seus membros para constranger publicamente os governantes que tratam a população de maneira desrespeitosa e passassem a alvejá-los com chuvas de ovos ou escrachá-los com o símbolo mais conspícuo da falta de respeito que é a torta na cara, a situação começaria a mudar.
Poucos fenômenos socioculturais foram mais importantes nos últimos 20 anos do que o amadurecimento comunitário da população brasileira. Os movimentos associativistas se multiplicaram, a ânsia pela participação política das bases populares é um fato que já não pode mais ser desconhecido ou minimizado. Essa participação tomou, em muitos setores, uma configuração prática, com a população se aliando ao Estado para complementar recursos e competências e existem inúmeros exemplos de como avanços notáveis na qualidade dos serviços públicos podem ser conseguidos ou preservados quando isso acontece. Não se pode, no entanto, deixar de notar que essa crescente co-participação da sociedade em ações que deveriam ser conduzidas, executadas e financiadas primordial (quando não exclusivamente) pelo poder público tem um lado negativo e esse é exatamente dar aos governantes uma sensação errônea de alívio, de que suas obrigações em relação à população diminuíram ou desapareceram. É preciso relembrá-los continuamente de que isso não é verdade. Mesmo que seja à força.
Ah, tive outra idéia. Fazer um grande movimento para que a ONU declare como patrimônio da humanidade... os seres humanos. Talvez assim passemos a merecer dos governantes a atenção que eles reservam atualmente para a Ladeira do Pelourinho, as Igrejas do Aleijadinho ou os palácios de Brasília.
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Mestrado em Organizações da UniFAE e membro da Academia Paranaense de Letras.