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Fluente na comunicação em idiomas estrangeiros, o diplomata Ernesto Araújo, então chanceler, não soube o que responder em coletiva concedida no começo de março. Ao ser questionado sobre o relatório da Transparência Internacional que fez a OCDE tomar uma medida inédita ao monitorar os retrocessos do Brasil no combate à corrupção, o diplomata murmurejou no português mais truncado da história republicana desde a medíocre Dilma Rousseff. Discípulo do “Guru da Virgínia”, balbuciou em redundância que era muito importante combater a corrupção e que a corrupção devia ser combatida, dando a entrevista como encerrada. Falou, falou e não disse coisa alguma: “embromou” a conversa.
Talvez o ministro não quisesse colocar um gosto amargo na boca dos seus companheiros de viagem a Israel. Bolsonaro e seu secto foram à Terra de Judá em missão de averiguar como estava o desenvolvimento de uma medicação para o combate à Covid. Medida acertada. O desenvolvimento de um medicamento que combata os sintomas graves da doença também é crucial, para amargor dos sacerdotes do “viva a ciência”. O que ficou mal explicado foi a conta da excursão: R$ 400 mil. Não haveria nada menos caro para Eduardo Bolsonaro e Hélio Negão?
Acontece que o spray nasal que motivou a viagem de quase meio milhão ainda está em fase de testes. Enquanto a comitiva de Bolsonaro passeava em Jerusalém, quem estava no Brasil era Augusto Aras, procurador-geral da República que tem certa culpa no constrangimento passado pelo então ministro das Relações Exteriores. Aras bradou no Congresso, alegando que o chamado fim da Lava Jato não passou de uma mudança de nome. Todos acreditariam, não fosse sua troca de farpas com procuradores da operação e declarações infelizes em todo o ano de 2020.
Aras disse que alguns procuradores da Lava Jato permaneceram, outros mudaram e que os procuradores “não são estrelas”. Augusto Aras é mesmo um gerenciador de egos. Desidratou a maior operação de combate ao crime no país, mas o crucial é não deixar a vaidade subir à cabeça dos procuradores. Garantir institucionalidade em vez de personalismo está na quintessência de suas atribuições, ao contrário das suas ocupações antigas, que envolviam organizar festas para o núcleo duro do PT.
Acontece que a vilania que Augusto Aras impõe seria apenas um detalhe na paisagem corrompida do Planalto, se não fosse a anuência do presidente em ver o Frankenstein jurídico do juiz de garantias ganhar vida. Essa proposta veio parasitada no pacote anticrime, dividindo o já paralítico processo penal em duas fases para dois juízes diferentes. Até o próprio Aras correu para o STF para paralisar isso. O PGR estava a cumprir ordens do presidente – o mesmo que deixou esse estrangeirismo processual passar, viu que o coreto balançou para o lado errado e pulou para apagar o incêndio.
Parece que, numa fração de segundo entre a pergunta do repórter e o fim da entrevista, Ernesto lembrou do ano de 2019. Aí, não teve jeito. Ou usava o embromation ou dava com a língua entre os dentes. Foi nesse ano que o Congresso pariu o entulho da Lei de Abuso de Autoridade. A legislação, que claramente foi uma resposta ao ethos de combate ao crime imposto pelo então ministro Sergio Moro, foi aprovada com ressalvas. Ainda assim, passou pelo crivo do presidente forte o bastante para ser instrumentalizada como forma de constranger juízes, procuradores e policiais em pleno exercício de suas funções. Faltou ao ex-paraquedista do Exército maior pulso firme diante do Congresso para vetar artigos que dificultariam a luta contra os ladrões da nação. Talvez o que tenha faltado tenha sido vontade.
Se a indignação não chegou a Bolsonaro, chegou à Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF). Em entrevista ao portal G1, o presidente Edvandir Paiva questionou alguns artigos, como o que tinha o disparate de prever prisão a quem decretar condução coercitiva de investigado de forma “manifestadamente descabida”. O congressista que escreveu isso estava mais preocupado em não ter o mesmo destino do dono do tríplex no Guarujá.
Falar de enfraquecimento do combate aos crimes em alto escalão esquecendo do senador Flávio Bolsonaro deveria ser crime? Se depender de sua atuação, até isso poderia ser relativizado. O “01” de Bolsonaro chegou a realizar uma aliança improvável com a bancada do PT e o então presidente do senado, Davi Alcolumbre, para impedir a instalação da CPI da Lava Toga. Em reportagem de 2019 publicada nesta Gazeta do Povo, o líder do PT no Senado, Humberto Costa, justificou o não endossamento da CPI pois via naquilo uma ferramenta para intimidar o Judiciário e atender às demandas do procurador Deltan Dallagnol, nêmesis da quadrilha do 13.
Do PT já é previsível o desatino quanto ao combate ao crime; até aí, nada de novo. Já Flávio Bolsonaro precisaria ser mais convincente em suas explicações ao barrar a CPI, considerando que sua família foi alçada ao poder graças a essas demandas legítimas da sociedade civil. O amigo do Queiroz não se deu ao trabalho. “A quem interessa uma instabilidade política nesse momento? Não é possível que as pessoas não enxerguem. A gente tem de ter equilíbrio. Agora seria muito ruim uma CPI como essa”, disse, atribuindo à CPI um fator de instabilidade para o governo. Ao ver que a CPI fora engavetada por falta de assinaturas, não se sabia quem estava mais exultado, Flávio Bolsonaro ou seus novos comparsas do PT.
Ernesto engasgou-se com as palavras pois não foi capaz de lembrar que seu chefe, eleito sob a égide do combate à corrupção e apoio à Lava Jato, descambou toda sorte de facadas sutis na pauta que o elegeu, até vê-la afundar de vez em 2021 com o picadeiro armado pelo STF – apenas a pá de cal. Não custa um real desviado lembrar da tentativa de interferência na Polícia Federal. Bolsonaro planejava substituir o superintendente da PF no Rio, Ricardo Saad, e recebeu a devida reação. Não obtendo êxito, resolveu trocar de vez o comando, ao demitir o diretor-geral da PF. Isso meses antes de tirar o Coaf das mãos de Sergio Moro, em uma manobra inédita na história republicana.
Sem instrumentos para executar seu trabalho e percebendo uma perda de autonomia czarista, Sergio Moro rompeu com o governo, sendo considerado um exemplo de retidão para os que se mantiveram leais à pauta de combate ao crime, mas jogado à fogueira dos incautos por quem aceitou levantar as mãos à suposta figura messiânica do presidente. Para terminar de aplicar o coice, Bolsonaro ainda foi capaz de indicar Kássio Nunes, saído das bocas-de-lobo do garantismo. Nunes garante muita coisa, mas não garante que os ladrões fiquem presos.
Desde que o Brasil demonstrou interesse em compor a confraria das economias mais proeminentes do planeta, a organização não poupou esforços em avaliar esse Bananão tupiniquim em seus rigorosos critérios. Como noticiado aqui na Gazeta do Povo, um relatório da OCDE causou preocupação ao atestar que a economia brasileira seria a única das grandes a registrar desaceleração no primeiro trimestre de 2021 – flagrante descompasso com as demais potências mundiais. Apesar disso, o Brasil entrou na malha fina do órgão antes da divulgação do relatório e por razões que este governo tem dificuldade de expressar.
As explicações cobradas na fatídica coletiva nunca virão. Seus últimos dias no ministério serão lembrados por um contencioso político com alguns senadores. A pressão do Senado em cima do capitão Jair Bolsonaro foi tamanha que se viu obrigado a arremessar o escudeiro ao mar. O soldado fiel da ala ideológica do governo foi defenestrado, assim como uma leva inteira de ministros e altos comandantes das Forças Armadas. Não fosse por isso, o chefe do Executivo nem sequer consideraria abrir mão do seu comandado. Se detinha conhecimentos em espanhol e francês, estava em segundo plano. Quem quer entrar no jogo precisa saber que, ao ser colocado contra a parede, o melhor é não saber qualquer idioma inteligível. E nisso o ex-ministro passou com louvor. Para fazer parte do time, o embromation de Ernesto é o dialeto compatível com a importância do cargo.
Lucas Lôbo é bacharel em Engenharia de Telecomunicações.