O espaço político é sobretudo o ambiente do diálogo, cuja principal premissa é o respeito à pluralidade de opiniões e a garantia da igualdade de direitos e condições de expressá-las. É como espaço equânime de conversação que a política consolida a sociedade como uma comunidade da discordância e uma coletividade de assuntos discutíveis. É preciso, então, garantir espaços legítimos abertos ao debate e à discussão das ideias que orientam a sociedade em direção ao cumprimento desse que era, para Aristóteles, o sumo bem da vida política: a conquista da felicidade que é sempre um bem coletivo.
Eis a definição exata daquilo que poderíamos chamar de "grande política" e que, nessa medida, diverge da atividade minúscula da "pequena política", atrelada aos assuntos menores e ao jogo de interesses que transforma o espaço da conversação em mero subterfúgio midiático, fazendo com que o diálogo perca em conteúdo e se reduza à moralização dos discursos ao nível do vexatório. Nesse campo, valem mais as acusações e a depreciação do adversário do que o debate das diferentes posições; aparece mais a indecorosa intenção de enganar a opinião pública do que a de esclarecê-la. O diálogo, assim, perde a sua eficácia porque a notabilidade retórica que beneficia apenas uma parte dos falantes enfraquece o conteúdo da fala, que é de interesse de toda a sociedade. Não raro, nesses casos, sobram confusão conceitual, afirmações depreciativas e falsificadas, argumentos dogmáticos, fundamentalistas e superficiais tudo de que o verdadeiro diálogo deve prescindir.
O tema do aborto, como foi tratado na última campanha eleitoral à Presidência da República, é um bom exemplo dessas práticas de pequena política. Tendo ganhado destaque e provocado comoção nacional, a seriedade do tema (algo que o torna matéria essencialmente política) deu lugar à possibilidade eleitoreira de atacar essa ou aquela candidatura. Transformado em assunto eleitoral, o tema do aborto perdeu a sua potencialidade e ganhou contornos ideológicos e moralizantes, mostrando como a política, ao ser reduzida a atividade sufragista de tamanha anemia, embota a sua própria vocação.
No jogo da grande política, qualquer tema exige um debate sério, que envolva a capacidade de ouvir e conciliar as posições de diferentes instituições e que contemple a participação qualificada de toda a sociedade (não reduzida às pesquisas da opinião pública inábil). No caso do aborto, trata-se de decidir sobre a vida ou a morte de indivíduos (mulheres e crianças). Para a política, não poderia haver tema tão pertinente, cuja gravidade nos impede de reduzi-lo à disputa por votos. A pertinência do tema exige ocasião menos acalorada e espaços políticos mais oportunos, ramificados no cotidiano social.
Sim, há outra hipótese: restituirmos ao jogo eleitoral a sua importância social como momento privilegiado de debate de propostas que afetam a vida de toda a sociedade. O aborto, como tantos outros temas, merece um tal espaço. Do contrário, é preferível que ele não seja transformado em assunto de palanque, antes que a ignorância, a estupidez e a má-fé deliberem sobre conteúdos tão relevantes, para os quais os nossos políticos profissionais deveriam estar bem mais preparados.
Jelson Oliveira é professor do programa de pós-graduação em Filosofia da PUCPR.
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