• Carregando...

A recém-aprovada Lei n.º 11.464 vem sendo amplamente debatida sob um enfoque pragmático, qual seja, do efeito produzido com a alteração, permitindo a concessão de liberdade provisória para crimes hediondos. Já se fala, inclusive, na necessidade de nova alteração, visando simplesmente voltar atrás neste aspecto. Entendo, porém, que é mais relevante refletir não só sobre o conteúdo, mas sobre o modo de aprovação e a própria motivação da votação da lei. Proponho voltar os olhos para o fato com cuidado redobrado.

Em primeiro lugar, é necessário deixar claro que a Lei 8.072/90, a Lei dos Crimes Hediondos, padecia de graves problemas desde sua edição – entre eles, a vedação da progressão de regime de cumprimento de pena, violadora do princípio de humanidade da pena. A vedação abria passo a que o Estado, que existe em função do cidadão, simplesmente abrisse mão da reinserção social do condenado, fato que, mais do que inconstitucional, é desumano.

Além disso, desde o princípio, os juristas, especialmente os advogados, bateram-se contra a antiga lei também no que se refere à vedação de liberdade provisória, esgrimindo, entre vários argumentos, a violação do princípio de inocência – adianto-me em dizer, porém, que não acredito que esta questão se encontre no mesmo patamar de violação de princípios representado pela vedação de progressão de regime.

A proibição de liberdade provisória figura no próprio Código de Processo Penal, sob o epíteto das hipóteses autorizadoras da prisão preventiva, que nada mais são do que situações que admitem a prisão cautelar, no curso do processo ou do inquérito, motivada por uma situação de excepcionalidade que justifica que o sujeito responda ao processo sob custódia. Não se afirma, aí, culpa. O que se afirma é que há contra o réu um juízo de suspeita importante e que há riscos sociais muito altos para mantê-lo livre no curso do processo. Ninguém ousa discordar da legitimidade do dispositivo, que inclui hipóteses tão vagas e imprecisas como a "garantia da ordem pública" ou a "conveniência da instrução criminal". Nada impede que o legislador opte por incluir na lei outras hipóteses nas quais, cautelarmente, a prisão se imponha. É verdade que a solução simplista adotada pela Lei 8.072/90 de apontar um rol de delitos como insuscetíveis de liberdade provisória não é a melhor, mas isso é uma decisão de política criminal, que por si só não é ilegítima.

A melhor solução, a meu ver, seria ampliar o rol de possibilidades de que o juiz decrete a prisão preventiva cautelar em casos de crimes hediondos, incluindo, por exemplo, a hipótese de haver fundada suspeita de ser o indiciado partícipe de quadrilha ou bando, ou a existência de outra investigação policial em curso contra o indiciado. Deste modo, haveria margem para deliberação do Judiciário sobre a liberdade provisória e, ao mesmo tempo, um estreitamento desta via para o autor de crime hediondo.

Na Lei 11.464, o que houve foi a acolhida da recente orientação do STF sobre a progressão de regime, ou seja, que o direito à progressão deveria ser estendido a todos, mesmo aos condenados por crimes hediondos. A par disso, foi acolhido o argumento, menos válido, dos que entendem também violadora de princípios a vedação de liberdade provisória. Como este último dispositivo, que era uma vedação expressa da Lei 8.072/90, culminou simplesmente suprimido do texto da nova lei, os que votaram e aprovaram o projeto, fazendo-o açodadamente e inspirados por um afã de tratar de piorar a situação dos condenados por crime hediondo, não se deram conta de que também melhoravam as situações processuais de tais réus.

Obviamente o que foi votado não era o que aspirava o Congresso Nacional. Tampouco é correto o que se pretendia, ou seja, o uso simbólico do Direito Penal, como forma de "compensar" incapacidades de dar soluções a problemas sociais. Em resumo: no que tange à liberdade provisória, a nova lei é ruim, mas a anterior, também.

Paulo César Busato é promotor de Justiça no Estado do Paraná, professor de Direito Penal e doutor em Problemas atuais do Direito Penal pela Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]