"No tumulto das conflagrações, não tenho dúvida, a tua voz há de se erguer do Atlântico sob as bênçãos de uma cruz de estrelas, para ditar ao mundo uma palavra de paz, de concórdia e fraternidade." Estas palavras referidas à nossa terra as resgatamos de um discurso de Jorge Lacerda, ex-govenador de Santa Catarina, nascido em Paranaguá, formado na Faculdade de Medicina do Paraná em 1937. Há 49 anos, a aeronave que o trazia de Florianópolis para Curitiba, juntamente com outros políticos, desfez-se em trágico acidente fatal.
Reler seus discursos em Democracia e Nação (1960) permite buscar, na nossa história política, valores que pertencem às experiências de vida que nutrem a nossa cultura. Possibilita estabelecer uma ponte entre passado e futuro. Desagregaram-se as tradições que propiciavam o processo de construção da cidadania! Alasdair MacIntyre compara no seu livro "Depois da Virtude" a situação atual da prática das virtudes com o que ocorreu após uma explosão atômica em que nada restou, senão uma paisagem devastada. Encontramos apenas fragmentos das virtudes que antes se prezavam. O que mais viceja é o relativismo moral, a apatia cidadã, a banalização da vida, a indiferença provocada pela falta de cultura dos valores morais.
Os valores éticos cultivam-se em comunidades onde se aprendem modos de praticar as virtudes cívicas e morais. Hoje torna-se necessária a reflexão sobre estes valores em primeira pessoa, encarnados na vida daqueles que pela sua experiência de vida deixaram um legado. Os valores não são produtos depositados em estantes, prontos para o uso, necessitam ser aprendidos por meio de histórias de vida.
De cultura preclara e inteligência prodigiosa, Jorge Lacerda via a responsabilidade histórica do político como protagonista do bem comum. Perspectiva esta, hoje rara, por isso mais valiosa. Como político, propõe um modelo: "Temos procurado, na medida das nossas forças, e com a plena consciência das responsabilidades históricas que o destino impôs aos homens públicos de nossa terra, não desmerecer desse legado heróico dos pioneiros e desbravadores da nossa grandeza, cuja vida deve servir de exemplo e de estímulo aos nossos governantes." Estas palavras hoje soam como utopia, pois a política tornou-se a quinta-essência da hipocrisia, o laboratório onde se destilam nefastos componentes da alquimia da astúcia.
Devido à sua magnitude moral, brotavam forças das suas palavras, a ponto de obter do governo Vargas as providências para a dragagem dos portos catarinenses. Declarava neste episódio: "Há dragas apitando ainda nos editais de concorrência pública. Irrompem dragas por toda parte. Dragas fotogênicas nos catálogos estrangeiros. Dragas nos livros e dragas nas pranchetas. Há dragas nascendo no pensamento dos nossos técnicos, e há dragas morrendo nas gavetas das repartições. Dragas flutuam na imaginação dos nossos marítimos e das populações das cidades portuárias do país. Há dragas na fantasia das nossas autoridades, e mais dragas existentes na intimidade inconfessável dos cálculos vorazes dos eternos intermediários dos negócios da República". Quão atuais soam estas palavras! Sanguessugas, mensalões, valeriodutos, etc., que tornaram-se presentes na triste paisagem política do nosso país!
A personalidade que hoje lembramos foi assim descrita pelo então presidente Juscelino Kubitschek: "Jorge Lacerda vivia uma hora de realização magnífica. Moço, animado por um alto desejo de servir o seu país, mal começava uma carreira de homem político que se anunciava esplêndida. Era não só hábil e inteligente, como também de boa vontade e um patriota".
Recuperar exemplos de vida que marcaram positivamente a nossa história é contribuir para deixar um legado que preencha o atual vazio de valores políticos, como ponte entre o passado e o futuro, que ainda podemos conectar, como estímulo para as novas gerações.
Paulo Sertek é professor universitário e autor de "Responsabilidade Sociale Competência Inter-pessoal".paulo-sertek@uol.com.br