Viaduto Santa Ifigênia durante a quarentena.| Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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A indesejada situação de isolamento e paralisia econômica no Brasil (e no mundo) é tão grande que tendemos a aceitar qualquer coisa que nos tire de casa e nos faça voltar ao trabalho à “moda antiga”. Este estado de espírito, somado a uma realidade economicamente espinhosa (para dizer o mínimo), cria um cenário propício para surgirem muitas vozes questionando a eficácia do isolamento (“a cura não pode ser pior do que a doença”) e outras disseminando informações sobre a existência de vacina ou remédio.

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Quando alguém anuncia, nas redes sociais, algo alvissareiro sem conferir a fonte, promove muito mais alvoroço que tranquilidade, pois se apresenta como portador de água no deserto. De igual forma, quando a autoridade máxima de um país, ainda que com as melhores intenções para com o bem-estar de seu povo, 1. ignora posição embasada e científica dos técnicos do assunto; 2. menospreza o vírus e sua nefasta possibilidade de propagação; 3. sugere intenção de relaxamento do isolamento ou 4. anuncia data fixa para terminá-lo, avança o sinal amarelo, quando não o vermelho. Não é hora do querer-fazer, mas sim do dever-fazer.

Donald Trump, por exemplo, teimou e muito demorou para enxergar que os Estados Unidos – a maior economia do planeta, com um arsenal militar abissal – são pequenos diante do inimigo invisível e feroz capaz de dizimar um porcentual substancial de pessoas, levando, por consequência, a colapso todo o sistema médico-hospitalar do país. O depoimento que chega de médicos e enfermeiros (além de outros heróis da resistência) é estarrecedor. Não apenas os idosos, mas jovens e os próprios profissionais destes serviços, cuja missão é salvar vidas, as estão perdendo. De repente, na maior economia do mundo não há respiradores suficientes, nem sequer materiais básicos para enfrentar o tsunami viral. Itália e Espanha lideram uma triste realidade na União Europeia.

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Em 29 de março, em entrevista coletiva na Casa Branca, Trump – que havia anunciado urbi et orbi a volta à normalidade – cedeu aos undisputed arguments do diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e estendeu a quarentena até o fim de abril. Claro que o fez sem querer, mas com o dever de comandante em chefe da nação. Não mais poderia ignorar a verdade nua e crua dos dados e briefings que lhe chegavam havia um certo tempo.

Nem se diga que com US$ 2 trilhões “para distribuir” fica fácil resolver o problema. Primeiro, porque os trilhões não foram aprovados para permitir às pessoas quebrar a regra do isolamento; é justamente o contrário. Em segundo lugar – e muito mais importante –, se desdenhado o isolamento, os EUA correriam o risco de ver sua população reduzida em 2 milhões de pessoas, segundo estimativa das autoridades sanitárias. Com as medidas impostas de mitigação, estima-se ainda algo até 100 mil fatalidades. Aliás, no país recheado de láureas de Prêmio Nobel de Medicina e Economia, ainda não surgiu uma voz sequer que defenda a flexibilização do isolamento residencial e o fim do distanciamento social.

Os governantes, pouco importa o partido ou ideologia, precisam muito escutar as autoridades sanitárias e infectologistas. Precisam mais: bem processar o que escutam. Nenhum anúncio ou comentário, muito menos decisão, pode e deve ser feito sem ouvir e bem entender a mensagem que emana de quem é mesmo autoridade no assunto, pois a realidade virá e poderá vir ainda mais brutal. A partir da absorção do real cenário e de seus efeitos, o mandatário máximo de qualquer país tem aí a possibilidade de dar um recado sereno, ainda que impopular, à população.

Um dos segredos do “sucesso” da Coreia do Sul foi, além da capacidade enorme para fazer testes (e colher dados precisos), tecnologia e bom sistema de saúde, foi a confiança que o povo sul-coreano depositou no recado uníssono e convergente das suas autoridades. Os países foram todos pegos de surpresa e cada qual deve agir em cima de suas capacidades e limitações.

Não é, pois, hora de divisão, de panelaços, muito menos de carreatas; mas sim de muito conhecimento e coordenação de ações na ponta de cima (entre presidente, governadores, prefeitos e entidades de classe), com obediência na ponta de baixo (população). O inimigo não é deste ou daquele país, deste ou daquele povo, deste ou daquele partido, desta ou daquela raça, religião ou gênero. Se o problema foi ou não deliberadamente plantado, o fato é que o planeta hoje está como está; aliás, como nunca esteve. Teorias da conspiração – que pipocam feito milho – pouco ajudam. O problema é de todos os “terráqueos”, para usar expressão de filme de ficção.

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A verdade, como dizia o filósofo alemão Schopenhauer, passa por três estágios: no primeiro estágio, é ridicularizada; no segundo, é atacada fervorosamente; e, no terceiro, é aceita como sendo uma inerente realidade. Alguns governantes parecem ainda estar teimosamente nos estágios 1 ou 2, embora seus experts da saúde tentem – com diplomacia – informá-los que estamos todos, sem exceção, na fase 3.

Capa recente da revista The Economist trazia o título The Next Calamity: Covid-19 in the Emerging World. A reportagem indica que o vírus pode causar efeitos devastadores nos países em desenvolvimento pelas razões estruturais que todos sabemos. Não há como imaginar a volta ao trabalho presencial enquanto o vírus não for debelado, ou pelo menos enquanto a curva da sua propagação não for achatada. O trabalho dos profissionais da saúde, dos caminhoneiros, dos centros de distribuição, dos supermercados, farmácias e outros serviços essenciais que se arriscam “na rua” deve ser apoiado. E o melhor e maior apoio é da população, ao ficar em casa.

Ainda que todos hoje concordássemos com o “basta” de isolamento, pergunta-se: como e quem, para citar um exemplo, abriria o comércio? Quem iria comprar ou vender? E, mesmo que imaginássemos que todos fôssemos comprar e vender, quem iria trabalhar? Em que condições? E aqui reside o principal problema: o vírus é comunitário. Ademais, há pessoas que, mesmo infectadas, são assintomáticas: passariam a infectar muita gente (sim, jovens e atletas também) em progressão geométrica, inclusive os próprios defensores do “basta”. Aliás, estes é que poderíam infectar aqueles. Se o navio está enfrentando tempestade sem precedentes, o que não pode é ocorrer briga na sala de comando, muito menos decisão de ir ao convés ou de jogar-se ao mar só porque pensamos que a ilha está perto ou bem sabemos o movimento das correntes. Nesta hora, lembremo-nos de Sócrates: “só sei que nada sei”.

Os profissionais da saúde, que tampouco são imunes, clamam estereofonicamente para as pessoas ficarem em casa para que tenham a mínima condição de trabalho. Temem, imploram e alardeiam que o dique poderá estourar a qualquer momento, com insuficiência de leitos, de pessoal e de equipamentos para recepcionar não só os infectados pela Covid-19, mas também qualquer outro paciente, independentemente da doença.

Dias atrás, caminhões frigoríficos estavam estacionados ao lado de hospitais em Nova York, a Meca do capitalismo, para fazer o que ninguém imaginaria ver um dia. Na Itália, o prefeito de Milão, que defendeu “Milão não pode parar”, assiste a recordes negativos e hoje pede desculpas. O Brasil não precisa desafiar a lógica mundial para fazer a prova de São Tomé.

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O anúncio, circulado com velocidade da luz, de que um remédio para a malária cura a Covid-19 é apressado e até perigoso, pois pode – aí, sim – matar aqueles que precisam deste remédio, como, aliás, já ocorreu nos EUA. A cura do vírus está na prioridade de todos os principais laboratórios e universidades do mundo, 24 horas por dia, sete dias por semana, sem a menor dúvida. Mas o remédio (ou vacina) precisa passar pelo tripé: ser seguro; ser eficaz; e contar com produção suficiente. Para ser seguro, muitos testes – durante um bom tempo – precisam ser feitos para se saber dos efeitos colaterais. De nada adianta tampar uma goteira e criar outra. Em seguida, vêm os testes sobre eficácia. Resolve mesmo? Depois vem a produção para um planeta desesperado. Temos de reconhecer que o vírus chegou antes e a solução não é assim tão imediata como todos desejamos.

Quando a onda se for, inúmeras lições serão tiradas para que o mundo não passe por igual severa privação quando da chegada do próximo vírus. Atualmente, um terço do planeta está trancafiado e esta fração deve aumentar. Não é crível imaginar um mundo “letargicamente submisso” em casa enquanto só o Brasil teria a fórmula eureka: o único país que sabe confrontar, afrontar e enfrentar o vírus afrouxando o isolamento antes da hora para revelar energia, coragem, capacidade de reação e pujança econômica. Se assim proceder, o Brasil irá perder muito com 1. dezenas ou centenas de milhares de mortes; 2. hospitais em colapso para qualquer atendimento; e 3. uma economia não só mais paralisada, como também mais desordenada, mais desabastecida e mais violenta. Todos, sem exceção, estamos sofrendo; até o futuro rei da Inglaterra, com toda a mordomia de que desfruta, deixou de ser, na dicção orwelliana, mais igual que os outros.

Todos queremos ver logo o fim deste gremlin invisível pelas razões que a cada um penetra ou que cada visão, razão, mente e coração alcança. Mas, independentemente dos nossos pensamentos ou convicções, uma coisa é certa: nosso querer-fazer não pode inconsequentemente ignorar o dever-fazer. Aqui não há dúvida, nem dilema shakesperiano. E la nave va!

Mauricio Gomm F. dos Santos é advogado.