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| Foto: Tolga Akmen/AFP

Recentemente li uma entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera do padre espanhol Julián Carrón, líder do Movimento Católico Comunhão e Libertação, muito influente na Itália, especialmente na região da Lombardia, sobre a tensa relação entre os “soberanismos” e o “globalismo”, a tensão entre a pertença a uma história particular e a abertura ao universal.

Creio que Julián Carrón acertou na mosca na análise do que acontece no presente momento do mundo, bem como na resposta que ele apresentou: faz-se necessário encontrar, no presente momento, um “justo equilíbrio” entre a pertença a uma história particular e a abertura ao universal, que é típica do humano. Uma autêntica humanidade é, ao mesmo tempo, enraizada numa pertença ao próprio local onde vive, à cidade e à nação, e ao mesmo tempo, é aberta ao mundo inteiro, ao universal, ao diferente.

Vemos na história como a abertura ao diferente construiu importantes nações. Não precisamos voltar a séculos atrás: basta observarmos o nosso próprio país, o Brasil, e de forma talvez mais radical, países como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália, países com significativas populações de imigrantes. A própria Europa, graças à integração ocorrida após a formação da União Europeia e ao colapso do comunismo no leste europeu (que por sua vez, levou à queda do Muro de Berlim, em 1989) construiu espaços de livre deslocamento de pessoas, como o espaço Shengen, por exemplo.

A atual ordem multilateral global representa a pretensão do Iluminismo no estágio extremo

Então, cabe aqui uma pergunta: o que nos quer dizer o retorno do fenômeno do nacionalismo e do soberanismo, expressos em diversos fatos que se sucedem: a eleição de Donald Trump, o Brexit, a chegada de Marine le Pen ao segundo turno nas eleições francesas, a vitória de Matteo Salvini na Itália. O que querem dizer todos estes fatos? É sintomático que todos estes fatos ocorreram em ambientes democráticos: Trump foi eleito, o Brexit foi escolhido em referendo, Marine le Pen e Matteo Salvini chegaram aonde chegaram via eleição, ou seja, por meio dos votos, democraticamente, legitimamente.

O que a população quer dizer com isso é algo que raramente vejo articulistas esclarecerem ou ao menos se perguntarem. Tenho visto na mídia e na academia reações atônitas e muitas até histéricas, como se a chegada de Trump ao poder nos Estados Unidos e a aproximação do Brexit estivesse nos levando ao Apocalipse.

Na minha opinião, todos estes fatos são sintomáticos. Sintomas de uma doença da qual padece a atual ordem global, o chamado multilateralismo, também chamado pelos seus críticos de “globalismo”, que nada tem a ver com a globalização econômica. Globalismo é a hipertrofia destes organismos multilaterais que padecem de uma doença grave: o déficit de legitimidade, o déficit de democracia.

Leia também: O renascimento do nacionalismo na Europa (artigo de Pedro Henrique Ribeiro, publicado em 8 de julho de 2018)

Leia também: O Brexit ficou mais distante? (artigo de João Alfredo Lopes Nyegray, publicado em 17 de janeiro de 2019)

Não são reações atônitas nem histéricas que resolverão os problemas colocados por esses novos atores da cena internacional, como, por exemplo, a paralisação do governo americano em nome construção de um muro na fronteira com o México ou a redução dos imigrantes que fogem da fome, do terrorismo e da guerra a meros números sem rostos, nomes e histórias. O que nos levou a este estado de coisas foi a hybris – ou seja, a pretensão desmedida e arrogante – adotada pela atual ordem multilateral global, a sua pretensão messiânica de resolver todos os problemas do mundo por meio da construção de gigantescas burocracias supraestatais, globais. De fato, como afirma Julián Carrón, a atual ordem multilateral global representa a pretensão do Iluminismo no estágio extremo. Basta lembrar que essa ordem global já estava prevista num opúsculo publicado por Immannuel Kant no longínquo ano de 1795, chamado Para a paz perpétua. As sementes do que hoje é a ordem multilateral global, e em especial a Organização das Nações Unidas já estavam presentes no opúsculo kantiano.

Não devemos jogar fora a criança com a água do banho. Fazer críticas ao “globalismo” não significa rejeitá-lo. Significa, na realidade, ajustá-lo, reconhecer as suas atuais deficiências e limites e reformá-lo. O que a situação grave no Reino Unido pede, por exemplo, não são previsões apocalípticas nem histeria, mas sim uma reforma da União Europeia. Há algo na União Europeia atualmente que não vai bem, é isto que o fenômeno do Brexit quer dizer. Creio que a solução não seja o mero euroceticismo de Marine le Pen e Matteo Salvini, mas sim a reforma da União Europeia. A mesma leitura deve ser feita com relação à figura controversa de Donald Trump. Devemos nos perguntar: o que os cidadãos da América profunda quiseram dizer elegendo-o ao invés de eleger Hillary Clinton? Pânico, pessimismo e histeria não resolverão nada. É necessário olhar e tentar entender. Estamos vivendo uma profunda mudança de época, e a resposta que o nosso tempo pede não é uma polarização entre soberanismos e globalismo, mas sim encontrar um justo equilíbrio entre a pertença a uma história particular e a abertura ao universal.

Dimitri Martins, analista de Políticas Sociais no Ministério da Economia, é especialista em Gestão Pública pela Enap mestre em Administração pela UFBA.
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