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O jovem italiano Carlo Acutis (1991-2006) foi beatificado oficialmente pela Igreja Católica em 2020 e em maio deste ano a Santa Sé reconheceu um segundo milagre obtido pela intercessão do jovem, o que abre caminho para que ele seja formalmente canonizado para a veneração dos fiéis como um santo católico.
A fama de santidade de Carlo Acutis se deveu à forma como exerceu a divulgação dos ensinamentos e crenças católicas, sua frequência aos sacramentos da Eucaristia e Confissão, bem como sua dedicação à caridade. Além disso, o jovem enfrentou com paciência e sentido sobrenatural a leucemia, que ocasionou a sua morte precoce aos 15 anos de idade.
Mas certamente o que é mais chamativo no beato Carlo Acutis é a sua forma moderna de evangelização. Ele exerceu um apostolado virtual, criando um site que divulgava milagres eucarísticos e aparições da Virgem Maria reconhecidas pela Igreja Católica. Diferente de grande parte dos santos mais conhecidos tanto por fiéis católicos como por não-católicos, Carlo não era um bispo, padre, diácono, monge ou frei.
Era um simples adolescente como tantos outros de sua idade, que se vestia de forma comum e praticava formas de lazeres comuns, distinguindo-se dos demais apenas pela sua forma de praticar com mais seriedade a religião cristã. Em suma, um indivíduo com o qual inúmeros jovens da Igreja Católica podem identificar um modelo de santidade e vivência da fé católica.
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Esse caráter comum, ordinário, do adolescente em vias de ser canonizado tem se refletido nas imagens que estão sendo confeccionadas do beato para a veneração pública dos fiéis nas Igrejas e para devoção particular nos lares católicos. Nelas, Carlo Acutis é representado usando roupas comuns, informais, daquelas que os jovens usam em seu cotidiano. A representação mais comum, o retrata vestindo uma camisa polo vermelha e calça jeans, como ele aparece em uma de suas fotografias mais famosas facilmente encontrada na Internet. Na sua iconografia também aparecem elementos ligados à sua vida comum, como tablet, máquina fotográfica ou bola de futebol. Como elemento religioso, geralmente aparece com uma hóstia nas mãos ou próxima ao peito.
Alguns setores mais tradicionalistas da Igreja Católica manifestaram inquietação ou mesmo repulsa a essas imagens do beato Carlo, principalmente através de postagens nas redes sociais. As críticas mais comuns são aos trajes e aos instrumentos presentes nas imagens, que eles entendem como uma forma de “banalizar a santidade”.
Eles argumentam que Carlo deveria ser representado como a iconografia mais antiga e tradicional, vestindo a túnica branca (símbolo do batismo), as vestes litúrgicas de coroinha (já que Acutis chegou a servir como coroinha/acólito eventualmente em celebrações da missa) ou o terno e gravata (que usava em missas mais solenes). De acordo com essa visão, para que a imagem do beato seja adequada à contemplação e ao ambiente litúrgico dos templos, ele deveria ser retratado da forma como se apresentaria dentro de uma missa solene. Essa visão crítica, entretanto, ignora a história tanto do vestuário quanto da arte sacra cristã.
Quanto ao vestuário deve se notar que, embora a Igreja sempre tenha recomendado modéstia nas roupas (em especial cobrindo determinadas partes do corpo ou se adequando ao ambiente e suas circunstâncias) nunca houve um código de vestimenta, uma veste própria ou “uniforme” pela qual os católicos deveriam se distinguir dos demais. Os católicos só se vestiram de forma distinta de seus conterrâneos em contextos de minoria religiosa quando governantes de outros credos os obrigaram por meio da lei a usarem trajes diferenciados.
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Na maioria das culturas, pelo menos até o século XVI, as vestes eram relativamente simples em sua forma e tipos de materiais, excetuando-se as classes mais altas ou abastadas. E com os cristãos não foi diferente. Entretanto, no século XIX e primeira metade do século XX criou-se uma mentalidade excessivamente formalista (em gestos, linguagem e vestuário) nas sociedades ocidentais, uma forma pela qual a burguesia em ascensão buscava se diferenciar dos gostos extravagantes da nobreza. Esse formalismo, contudo, ainda era luxuoso se comparado com a forma de vestir e os modos de convívio das classes mais comuns.
Os meios cristãos foram influenciados pela mentalidade formalista, de tal forma que já na segunda metade do século XX grupos católicos mais tradicionalistas como a TFP (Tradição, Família e Propriedade) eram vistos usando terno ou costume com camisa social e gravata em praticamente todos os momentos e circunstâncias de seu dia a dia. Mas, do ponto de vista do ensino e prática oficial da Igreja Católica, nunca houve uma imposição do uso de tal vestuário aos fiéis, nem mesmo para a frequência na missa dominical (embora se recomende o cuidado com a aparência nos ofícios litúrgicos como um gesto de delicadeza e de mostrar a importância daquele momento, que para os católicos é considerado mais importante que qualquer outra solenidade civil ou social).
Mas vamos adiante na questão de como santos e beatos foram representados na arte cristã. A Igreja Católica, as Igrejas Ortodoxas e demais Igrejas Orientais justificaram o uso das imagens em seus ambientes de culto (algo rejeitado pela maioria das denominações cristãs protestantes e evangélicas) a partir de duas finalidades: a instrução dos fiéis (recordar as histórias bíblicas e a vida dos santos, em especial para os fiéis iletrados) e a oração contemplativa (olhar as imagens ajudaria o fiel a concentrar seus sentidos e pensamentos na oração e meditação das crenças e ensinamentos da Igreja).
Olhando para as finalidades sustentadas pela Igreja para defender o uso de imagens no culto, fica claro que a arte sacra não é a mesma coisa que um simples retrato ou fotografia. A representação não precisa ser realista e naturalista, mas destacar elementos que ajudem a entender os dogmas da Igreja, a Bíblia e a vida dos santos. Por isso as dimensões dos personagens, a forma da composição da imagem, os cenários e outros elementos das pinturas, mosaicos e esculturas nem sempre refletiam a realidade material das pessoas ou eventos representados.
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Muitas obras de arte nas igrejas buscavam transmitir aos fiéis uma ideia visível de como seria a realidade invisível do Céu. E nesse contexto, muitos santos eram representados suspensos, flutuando no ar, em nuvens, ou em um fundo iluminado e dourado. Em alguns casos, as longas túnicas brancas simbolizam a pureza do santo ou a coroa e os mantos púrpuras, vermelhos ou dourados apontavam Jesus Cristo e a Virgem Maria como rei e rainha dos Céus e da Terra.
Mas também era necessário que os fiéis identificassem os santos de forma rápida, sabendo diferenciar uns dos outros. No caso dos mártires, que morreram pela fé, era mais fácil: foram retratados portando os instrumentos com a qual foram torturados e assassinados: São Lourenço com a grelha, Santa Catarina com a roda dentada, Santo André com uma cruz em forma de “X’, São Pedro com uma cruz invertida, São Paulo com uma espada…
Outros foram representados com vestes que apontavam sua posição na hierarquia da Igreja: bispos com mitra e báculo, sacerdotes com estola ou batina, monges e frades com seus hábitos. Mas e os santos comuns, leigos? Como mostrá-los? A forma mais comum foi pintar ou esculpir esses homens e mulheres com roupas ou instrumentos que identificassem o ofício que exerceram em vida. Santos militares como São Demétrio, Santo Expedito ou São Jorge apareciam vestindo armaduras e portando armas. Santos monarcas como o rei Luís IX da França ou a imperatriz romana Helena, eram representados com suas coroas e mantos reais. Santo Isidro, o lavrador, foi representado vestido como camponês e instrumentos agrícolas. Santo Homobono de Cremona, um mercador medieval, era apresentado vestindo roupas de comerciante e portando uma bolsa de moedas.
Seguindo essa lógica que norteou a história da arte sacra, qual seria a forma mais adequada de representar um adolescente ocidental dos anos 2000? Não seria justamente mostrá-lo como um jovem de seu tempo se vestia no cotidiano, como o vemos em suas fotografias? Ele poderia também ser retratado vestindo terno e gravata, como também aparece em algumas fotos, mas para um jovem comum de hoje uma imagem assim poderia parecer um adolescente mais antigo, do tempo de nossos avós. Alguém com quem um adolescente contemporâneo enxergasse menos identificação. Ele poderia ser representado igualmente vestido como um coroinha, como se trajava para servir no altar. Mas a imagem de um jovem com vestes de coroinha poderia facilmente ser confundida com uma imagem de São Tarcísio, o padroeiro dos coroinhas e acólitos.
Muitos podem objetar que São Domingos de Sávio, um jovem do século XIX, é retratado vestindo terno e gravata. Mas ele é apresentado dessa forma não porque se vestia assim especialmente para frequentar a missa, mas porque era a roupa comum do cotidiano de um jovem de muitas classes sociais do Ocidente em sua época. Outros ainda dirão que para ser exposta em locais onde a missa é celebrada, Carlo deveria ser retratado com terno e gravata, como estaria em uma missa solene. Mas isso nunca foi regra. Ou por acaso devemos supor que os santos militares assistiam às celebrações litúrgicas usando armaduras e de espada em punho? Ou ainda que os santos mártires frequentavam a igreja seminus expondo as suas feridas tal como foram expostos no momento de suas torturas e martírio?
É verdade que a arte sacra deve levar o fiel à contemplação e lembrá-lo de que a oração e a liturgia o unem aos santos e à presença de Deus nos céus. Mas as obras sacras também precisam tornar presente na vida do fiel os mistérios celebrados, para que ele saiba que precisa viver a fé em todos os momentos do seu dia. Quando um jovem católico for rezar diante de uma imagem de Carlo Acutis, ele não deveria recordar que é testemunha do Evangelho também quando está de calça jeans e camiseta andando na rua, convivendo com seus amigos ou navegando na internet? Não é justamente esse tipo de vida que o jovem beato levou?
Claro, existem questões realmente pertinentes que podem ser debatidas: a qualidade estética das imagens do novo beato (coisa que o movimento litúrgico e o sacerdote espanhol São Josemaria já criticavam com relação às imagens devocionais produzidas em série no século XX); o excesso de elementos secundários (que o abade São Bernardo de Claraval já reprovava na arte românica e gótica do século XII); a inconveniência de misturar o profano com o sacro (penso, especificamente, em algumas imagens que colocaram o logo da Nike nas roupas e tênis ou que colocaram nas mãos de Carlo em pé de igualdade um tablet e a Hóstia eucarística); a importância de colocar elementos religiosos (como um terço ou a hóstia no peito, lembrando a devoção do jovem pelo Sacramento da Eucaristia e pela Virgem Maria); a conveniência de apresentar Acutis com alguma postura ou gestual que remeta à ideia de oração, dentre outras.
Discutir a qualidade estética ou a forma mais adequada em simbologia religiosa de fazer imagens do Beato Carlo é perfeitamente aceitável. Mas implicar com a sua forma de vestir é negar quem ele realmente foi e transformar o catolicismo em um formalismo estéril e caricato. O lado positivo dessa implicância é que os algoritmos das redes sociais colocam Carlo Acutis em evidência, ajudando a tornar mais conhecida a vida e o exemplo deste jovem que uniu o extraordinário da santidade com o ordinário de uma vida comum.
Rafael de Mesquita Diehl é historiador, graduado, Mestre e Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente atua como pesquisador de projetos educativos online, professor universitário de História da Igreja em cursos de pós-graduação na rede privada e professor de História de ensino fundamental e médio na rede pública.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos