A moratória de cinco anos para abertura de escolas médicas chega com atraso e com a agravante de o MEC acolher os últimos processos, liberando cursos e ampliação de vagas. Menos mal se a decisão de fato for cumprida; se não se flexibilizar para os graduados no exterior, mantendo a exigência de revalidação de diploma; e se a Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (Anasem), inaugurada em 2016, impuser rigor e até o fechamento de cursos sem compromisso com a formação de qualidade.
Não somos contra a abertura de centros formadores, mas nos opomos ao processo mercantilista que se instaurou no campo da medicina, lançando ao mercado profissionais que, despreparados e inseguros, estarão mais suscetíveis a desvios éticos e ao repúdio da sociedade por ações ou omissões impactantes na saúde e na vida das pessoas.
Como órgão supervisor e também julgador e disciplinador das atividades médicas, ao CRM cabe zelar e trabalhar por todos os meios pelo perfeito desempenho ético da medicina, pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exercem legalmente. Assim, não tem função corporativa, mas de defesa da saúde do ser humano e da coletividade.
A formação ficou comprometida com os equívocos e irresponsabilidades dos governos recentes
As necessidades de saúde são tomadas como ponto de chegada e não como ponto de partida da educação médica. A formação ficou comprometida com os equívocos e irresponsabilidades dos governos nas últimas duas décadas, ao se implantar uma política de abertura indiscriminada de cursos, ignorando critérios elementares como infraestrutura e corpo docente qualificado. Cidades que nem sequer contam com atenção básica de saúde estruturada ganham uma escola como fator propulsor da economia, mas longe de assegurar a melhor formação médica e a fixação de profissionais e assistência de fato.
As duas primeiras escolas médicas brasileiras surgiram em 1808; foram necessários 90 anos para receber a terceira e outra década para inaugurar mais quatro, incluindo a da UFPR. Ao fim de 1999 tínhamos 102 e, dez anos depois, elas somavam 176. Com os últimos cinco cursos autorizados no fim de novembro, dois deles no Paraná – Umuarama e Guarapuava –, chegamos a 303. Triplicamos em 20 anos e agora há a oferta de 29.793 vagas de ingresso, sendo 1.954 nas (agora) 20 escolas do nosso estado. Ressalte-se que a taxa média de crescimento anual da população na última década foi de 1,64%.
Contra a suspensão de novos cursos: Um retrocesso para a medicina (artigo de Janguiê Diniz, diretor-presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior)
O Brasil é recordista absoluto de cursos médicos, na proporção com habitantes. A Índia, com quase 1,3 bilhão de pessoas, tem 381 escolas; a China, com população um pouco maior, tem 150; e os Estados Unidos somam 147. Se temos hoje quase 450 mil médicos em atividade no país – 25.351 no Paraná –, a projeção é de que o número triplique no começo da segunda metade deste século. Com certeza isso não será indicativo de fixação de profissionais nos vazios assistenciais ou de melhor atenção à saúde da população. Sem as condições de trabalho necessárias para o exercício médico seguro e qualificado, profissionais malformados serão cada vez mais dependentes da tecnologia e distantes de resolubilidade e humanização.
O Relatório Flexner é considerado o grande responsável pela mais importante reforma das escolas médicas de todos os tempos nos Estados Unidos, com profundas implicações para a formação médica e a medicina mundial. Naquela época, a mercantilização do ensino médico era impressionantemente similar à situação brasileira deste momento. Em sua edição de 24 de julho de 1910, o jornal The New York Times deu destaque ao relatório com a manchete “Fábrica para formar ignorantes”. Um exagero? Talvez. Mas mostra, no mínimo, como caminhamos na contramão da história, ignorando os aprendizados de mais de um século. A sociedade não pode continuar sendo ludibriada com falsa propaganda de que médicos, em número, sejam sinônimo de garantia de boa assistência.
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