Não será aprisionando cada vez mais as pessoas que conseguiremos um ambiente menos violento. Não se trata de recolher as crianças, mas de retirar os fatores desencadeantes de violência de seu cotidiano
O anti-herói juvenil revela a sua face mais aterrorizante espelhada no lixo cultural, em que as manifestações do individualismo, narcisismo, hedonismo têm mais valor do que a coletividade. Para satisfazer necessidades particulares, vale tudo, e o lugar do outro não tem representação. Esse é um modelo societário equivocado e vencido. Longe de ser construído solitariamente em mentes perturbadas, é forjado no dia a dia das relações, das desigualdades, da intolerância, no caldo cultural que alimenta a violência.
A tragédia da Escola de Realengo no Rio de Janeiro comoveu e mobilizou o país, deixando no ar um pedido de reflexão.
Jacob Levy Moreno, criador do psicodrama, dizia que uma resposta gera 100 perguntas. Um fato desse, por si só, gera inúmeras indagações. Mesmo sem respostas, exige discussão. Registro algumas ponderações devido à necessidade de buscar explicações, de aliviar a dor e de compreender tantos outros processos gestados no cotidiano das casas, das instituições, dos bairros que carregam expressões de violência tão desproporcionais como essa, assim como os assassinatos de jovens-pobres negros na periferia das cidades, os corpos encontrados nas valetas, as execuções por grupos de extermínio, as brigas de gangues, a ação de policiais despreparados.
Hannah Arendt diz que o homem não nasce humano, torna-se humano com a educação. Um processo de conhecimento, socialização e representação cultural, de humanização dos sujeitos. Ou seja, uma responsabilidade não só da família, da escola. De toda a sociedade que produz conhecimento, dissemina ideias, atribui sentido e significado aos acontecimentos, repassa valores, e, de alguma forma, influi sobre o que se pensa e o que se faz, seja por ação, omissão ou inércia.
Esse não deve ser interpretado como uma ação isolada de um único homem. Foi também, mas não só. Um homem que de alguma forma não pode filtrar as ideias, não soube significar os fatos, nem interpretar os acontecimentos. Que produziu um abismo entre ele e o mundo real e criou seu leito de morte e o de todos que estiveram no meio do seu caminho.
Muitas explicações apareceram: fanatismo religioso, bulliyng, quadro psicótico, etc. Seja qual for o motivo, esses processos estão presentes no contexto e seus efeitos afetam a todos. Mesmo um "surto psicótico" não se processa apesar do ambiente.
É preciso encarar e admitir a impotência ou limitação em prever ou prevenir atos desta natureza. Há um espaço de intervenção para evitar o crescimento dos aparatos de segurança como única solução possível. Principalmente em atitudes que podemos assumir e fazer repercutir em nosso espaço de convivência e em nossas relações pela construção de uma sociedade menos violenta.
Chama atenção um jovem afastado da escola há dez anos escolher esse espaço para significar os sentidos e a falta deles em sua vida. Isso faz refletir sobre o papel socializador da escola, que deve considerar o que acontece nela além da informação, do conhecimento e do desenvolvimento cognitivo. Ela ocupa um lugar essencial na formação dos sujeitos e na construção da sociedade. Por isso, necessita repensar seu olhar para além dos conteúdos programáticos das disciplinas, tornar-se um lugar de convivência e de aprendizado dos valores que devem orientar esse processo de socialização e produção cultural. Que esse repensar não implique reforçar o aparato de segurança.
Não será aprisionando cada vez mais as pessoas que conseguiremos um ambiente menos violento. Não se trata de recolher as crianças, mas de retirar os fatores desencadeantes de violência de seu cotidiano. A verdadeira proteção se faz com igualdade social, política pública inclusiva e atitudes dos adultos baseadas no exemplo, confiança, apoio e limite.
O que está reservado aos jovens? A cultura do aprisionamento e da punição. Estratégias de combate ao crime organizado e ao tráfico de drogas, desarmamento, educação de qualidade, oportunidades de inclusão são bem-vindos. Parques, praças, convívio social saudável, produtivo, criativo. A violência precisa ser trocada pela esperança de vida e confiança no futuro.
Que a dor da perda e a incompreensão da tragédia em Realengo possam ter algum sentido e trazer às famílias, ao Estado e à sociedade a coragem e a determinação de entregar aos nossos filhos um ambiente de paz, a ser construído não pelo outro, mas por cada um de nós.
Thelma Alves de Oliveira, coordenadora do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, é ex-secretária de Estado da Criança e da Juventude.
Julgamento do Marco Civil da Internet e PL da IA colocam inovação em tecnologia em risco
Militares acusados de suposto golpe se movem no STF para tentar escapar de Moraes e da PF
Uma inelegibilidade bastante desproporcional
Quando a nostalgia vence a lacração: a volta do “pele-vermelha” à liga do futebol americano