Quando se vê o país gastar milhões de dólares para ter um astronauta, o mesmo, mesmíssimo país que assiste impassível o sucateamento das Forças Armadas, obrigadas a dispensar os recrutas porque não têm dinheiro sequer para garantir o rancho diário e que não repõem seus equipamentos e armamentos há anos, fazendo prodígios de manutenção; o mesmíssimo país que não tem dinheiro para as universidades públicas nem para os poucos centros de excelência brasileiros, mas que gasta mais de um bilhão de reais em propaganda oficial; aquele mesmo que está investindo menos de 5% do orçamento fiscal, consumindo tudo o mais em juros e custeio da máquina administrativa; chega-se a uma conclusão melancólica: perdemos, simplesmente, a capacidade de estabelecer prioridades, de não apenas definir o que fazer com o dinheiro público, mas até a de definir o o que fazer antes.
Nessa hora me vem à mente uma figura admirável, Alípio Ayres de Carvalho, o pai do planejamento paranaense, que os discípulos e admiradores nunca promoveram de posto: para nós, ele, que chegou ao generalato, será sempre afetivamente o "Coronel Alípio", o maranhense-paranaense obstinado, estudioso, idealista e sonhador com os pés no chão, que ensinou toda uma geração a pensar o Paraná e seus problemas e a aplicar os poucos recursos disponíveis com racionalidade, dando ainda um exemplo de inexcedível probidade que, à luz dos hábitos políticos de agora, parece até ridícula .
Junto com outros de sua geração como Pedro Viriato Parigot de Souza, o coronel Alípio introduziu na administração pública paranaense o hábito de analisar os problemas em profundidade, resistindo ao "achismo" e às soluções mágicas o que, para muitos políticos dos anos cinqüenta, soava insólito e descabido. Afinal, que história era aquela de "prioridade um, prioridade dois..." que salpicava inevitavelmente suas conversas? E que história era aquela de reunir grupos para estudar os problemas paranaenses e para pensar nas maneiras de resolvê-los? Não tinham mais o que fazer? Quando se relê hoje os estudos da Pladep, realizados nos anos cinqüenta e amparados por toscas estatísticas, é que se entende a profundidade do esforço daqueles pioneiros e a contribuição que deram para a modernização do Paraná empreendida por Ney Braga e seus sucessores.
É evidente que Alípio sempre esteve à frente de seu tempo e pagou por isso. Não tardou o apelido: o coronel era o "professor de Deus" e seu cientificismo ocultaria uma enorme "falta de sensibilidade política". Mas isso nunca o deteve e ele não dava bola para os críticos pois, quanto mais numerosos fossem, mais comprovavam a teoria de Adenauer de que o bom Deus foi muito injusto com a humanidade, uma vez que colocou sérias limitações à distribuição da inteligência e nenhuma barreira à distribuição da burrice. De quebra, acumulou um saborosíssimo folclore que, cada vez que seus ex-auxiliares se encontram, relembram às gargalhadas, como o diálogo que manteve com um prefeito da época, depois deputado federal, a respeito de um frigorífico que havia se instalado na cidade: "Ô fulano, este frigorífico é para suínos?" "Suínos e porcos, coronel!" respondeu entusiasmado o alcaide. Ou quando foi inaugurar uma escola no então distrito de Francisco Alves e foi saudado pela nervosíssima professorinha como "Cornélio Alípio Ayres de Procópio" .
Outro dia, soube que há tempos o coronel Alípio anda adoentado e resolvi escrever este artigo para lembrar aos mais jovens que, antes que a atenção do país fosse monopolizada pela roubalheira do mensalão, tivemos em nosso país momentos em que uma elite de administradores públicos singulares que pensava nos seus problemas mais sérios e persistentes e nas maneiras de enfrentá-los. Uma elite que provinha de várias incubadeiras públicas, desde a diplomacia que abrigou um Roberto Campos, as Forças Armadas com Lúcio Meira, Álvaro Alberto e Casemiro Montenegro, aos ministérios e as estatais com Octavio Gouveia de Bulhões, Lucas Lopes, Rômulo de Almeida, Ignacio Rangel, Celso Furtado e tantos outros. Você podia discordar do jeito que eles pensaram o país, mas não podia negar que havia vida inteligente na burocracia nacional.
Alípio faz parte dessa elite.
PS. Lauro Grein escreveu um artigo delicioso nesta Gazeta sobre provérbios populares. Pensando na pobreza dos quadros brasileiros, arrisco-me a refazer um deles: O "em terra de cego quem tem um olho é rei" deveria merecer um rabicho: "e se for no Brasil, quem tiver um olho com catarata é herdeiro do trono".
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Mestrado em Organizações e Desenvolvimento da UniFAE.
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