A economia mundial contabilizou quase duas décadas de expansão, generalizada ou localizada, fincada na mudança de paradigma, exposta na tecnologia da informação, na rearrumação geográfica, produtiva e comercial, com o advento da China com moeda depreciada, enormes superávits comerciais e correspondente reciclagem no sistema financeiro do Ocidente. Ainda tivemos o crescente endividamento privado (famílias e bancos) dos países avançados, localizados no front imobiliário.
Mas a turbulência financeira, experimentada no final da primeira década do século 21, interrompeu essa tendência. As providências monetárias e fiscais, despejadas por bancos centrais e governos para o abrandamento da recessão e a fertilização do terreno para a reativação econômica, recolocaram na mesa de decisões o cotejo entre a proeminência de estado ou mercado no curso dos negócios.
Por certo, as diferentes posturas identificadas no interior dos sistemas capitalistas expressam interesses coincidentes e conflitantes, subjacentes a alinhamentos ou antagonismos ideológicos e ao caráter cíclico, ou mesmo instável, dos aparelhos produtivos e financeiros.
Por vezes, pactos hegemônicos, legitimados democraticamente ou não, demarcam, de forma precisa, os distintos papéis a serem exercidos pelos agentes e, definem os perdedores e beneficiários diretos das deliberações políticas negociadas ou impostas. Um esforço de busca histórica de ocorrência de tais episódios oportuniza a descoberta de nações em processo de construção tardia da industrialização, pela via da substituição de importações.
No caso brasileiro, emerge o reconhecimento de pelo menos três tipos de alianças estratégicas, mirando a subida rápida, embora tortuosa, dos degraus da produção manufatureira, sob a égide daquilo que se convencionou chamar de "desenvolvimentismo". Em um curto espaço de tempo inferior a meio século, esse desenvolvimentismo permitiu a concretização da 2.ª Revolução Industrial por essas paragens.
A primeira amarração, empreendida no intervalo 1951-1954, consubstanciada no Projeto Nacionalista de Getúlio Vargas, concebido ainda no decênio dos 1930, reservava ao Estado as atribuições de regulador, indutor, coordenador, financiador, produtor de insumos básicos, provedor de infraestrutura. Aliás, o volume de capital exigido, as complexidades tecnológicas, as reduzidas taxas de retorno, ou a prolongada maturação temporal dos projetos, representavam autênticas barreiras à concretização de inversões do setor privado, sobretudo nacional, nessas duas áreas.
A proposta varguista sublinhava a premência de fornecimento, pelo Estado, de retaguarda técnica, física e financeira para uma incipiente burguesia industrial, sediada no Sudeste do país, particularmente em São Paulo. Esse estado era fruto da combinação entre a perda de hegemonia política dos barões do café, depois da Revolução de 1930, e dos efeitos domésticos da adoção de um conjunto de mecanismos keynesianos, pelas autoridades econômicas brasileiras, para mitigar a crise cambial e resguardar a cafeicultura.
No fundo, os alvos preferenciais das medidas residiam na minimização da derrocada da renda e do emprego da cadeia produtiva atrelada à cultura do café, motor da economia nacional, com a utilização de instrumentos monetários, fiscais e cambiais de defesa. Frise-se que as raízes de ambos os colapsos repousaram na estreita sintonia entre os impactos da Grande Depressão Mundial de 1929 e da nova crise de superprodução e abrupta queda dos preços mundiais do café, por conta do substancial encolhimento da demanda externa.
Já a formação de um mercado consumidor mais encorpado para a absorção da produção do embrionário complexo fabril foi ensejada pelo amadurecimento do apreciável conjunto de direitos sociais, dirigidos à classe trabalhadora urbana, instituídos pela Carta Magna da década de 1940. A segunda e a terceira incursão serão objetos dos próximos artigos.
Gilmar Mendes Lourenço é economista e coordenador do Curso de Ciências Econômicas da FAE.