| Foto: Jean-Philippe Ksiazek/AFP

Enfrentando um câncer de mama incurável aos 55 anos, MaryAnne DiCanto se voltou para a “medicina de precisão”, segundo a qual os médicos receitam remédios de acordo com as mutações genéticas do tumor do paciente. E passou por repetidas biópsias para identificar as terapias que talvez ajudassem. “Ela apostou todas as fichas no conceito”, conta o marido, Scott Primiano, de Amityville, em Nova York.

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A essa altura, em um típico artigo qualquer, o leitor ficaria sabendo como a mãe de cinco filhos resolveu se arriscar com um medicamento experimental que ninguém esperava que fizesse efeito. E seria a protagonista aguerrida que supera todos os obstáculos, permitindo que o mundo comemorasse o triunfo da ciência moderna e se preocupasse um pouco menos com a própria mortalidade.

Acontece que há um probleminha quando se fala de medicina de precisão para o câncer dessa maneira, pois leva o público a crer em algo que nem sempre se concretiza. Apesar da grande expectativa, DiCanto morreu em 2017, aos 59 anos. Segundo o marido, ela se beneficiara com o tratamento padrão, mas nenhuma das terapias específicas recomendadas através de testes genéticos prolongou sua vida.

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Os médicos e hospitais adoram falar dos pacientes que salvaram por meio desse método, como também a imprensa, mas o fato é que o número de pessoas que morrem supera vastamente o de sucessos, que são raros. “Há pouquíssimos casos em que se pode analisar um painel genômico, pegar um remédio na prateleira e dizer: ‘Este vai funcionar’. É o nosso objetivo em longo prazo, mas em 2018 não chegamos lá ainda”, admite Nikhil Wagle, especialista em câncer do Instituto Dana-Farber, em Boston, que ajudou a desenvolver os exames de precisão. Primiano desabafa: “Você acha que vai ser uma coisa mais precisa, como um raio laser em comparação a um tiro, mas continua sendo só um tiro”.

As terapias dirigidas tendem a ser menos bem-sucedidas em pacientes que já tentaram todos as opções tradicionais

É claro que tem havido progressos reais. Os exames de mutação genética se tornaram padrão em casos de câncer de pulmão, melanoma e alguns outros tipos de tumores; acontece que, de acordo com as estimativas dos especialistas, o número de pessoas com câncer avançado que se encaixam nessa abordagem fica entre 8% e 15%. “E essa terapia dirigida ajuda apenas metade dos que se arriscam”, informa Vinay Prasad, professor associado da Universidade de Ciência e Saúde do Oregon.

Para alguns entendidos, como David Hyman, do Memorial Sloan Kettering Cancer Center de Nova York, tais testes deveriam estar disponíveis para todos os pacientes de câncer avançado, pois não se pode prever quem está qualificado a receber e se beneficiar do tratamento. “Quando o paciente reage a esses medicamentos, a tendência é que melhorem muito e tenham uma sobrevida muito mais longa do que a esperada”. Entretanto, ele reconhece que a medicina de precisão “não está suprindo as necessidades da maioria dos pacientes”.

As terapias dirigidas tendem a ser menos bem-sucedidas em pacientes que já tentaram todos as opções tradicionais, como DiCanto. Um estudo publicado no ano passado na Cancer Discovery revelou que, de mil pacientes, a medicina de precisão não conseguiu ajudar 930. No último simpósio da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, os pesquisadores apresentaram quatro estudos de medicina de precisão; desses, dois foram um fracasso total e os outros dois não se saíram muito melhores, com a redução dos tumores em 8% e 5% dos casos. Só que não receberam praticamente nenhuma cobertura da imprensa.

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Como repórter do setor de serviços de saúde, entrevisto muitos médicos que não se sentem à vontade para falar dos que não sobrevivem; preferem se concentrar naqueles que salvaram. Atropelam as decepções do presente para se concentrar em um futuro no qual todos recebem o tratamento de que necessitam. Quem não ouve com cuidado e atenção acredita facilmente que essas curas futuras já acontecem. Os hospitais promovem seus programas divulgando os casos dos sobreviventes; as empresas vendedoras dos testes que procuram as mutações – tais como Foundation Medicine, Caris Life Sciences e Guardant Health – destacam apenas os cenários mais favoráveis.

Leia também: Plano de saúde ou plano de doença? (artigo de Cadri Massuda, publicado em 13 de junho de 2018)

Leia também: A receita para derrotar o câncer de mama (artigo de Maira Celeffi, publicado em 3 de fevereiro de 2017)

Em um quadro desses, que mescla esperança e desespero, como é que os pacientes podem tomar decisões lúcidas? DiCanto deu à medicina de precisão tudo o que tinha, inclusive biópsias dos pulmões e do fígado, onde o câncer se espalhara. “O primeiro painel genômico apontou para um remédio recém-aprovado, que ela teria experimentado de qualquer forma; quando deixou de fazer efeito, fez outra biópsia, mas os testes recomendaram o uso de um medicamento tão tóxico que quase a matou”, revela Primiano. Os exames adicionais concluíram que DiCanto poderia tomar opções disponíveis apenas em triagens clínicas, só que ela não estava qualificada para participar de nenhuma. “Não foi ela que desistiu; foi seu organismo. Ele já não aguentava mais nada”, completa Primiano.

Embora os cientistas tenham identificado milhares de variações genéticas que possam influir no desenvolvimento do câncer, os médicos sabem como modificar apenas alguns com remédios – e, mesmo quando esses são compatíveis com a mutação, nem sempre funcionam. “A terapia eficiente para o melanoma, por exemplo, não ajuda em nada quem tem câncer colorretal, ainda que a mutação seja a mesma”, afirma Wagle, membro do conselho médico do Living Beyond Breast Cancer, um grupo de defesa de pacientes de câncer ao qual DiCanto era afiliada.

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O pagamento dos testes e tratamentos é outra dor de cabeça. As companhias de seguro muitas vezes se recusam a cobrir o sequenciamento genético ou as terapias experimentais/fora do padrão recomendadas subsequentemente. Primiano, que é corretor de seguro contra enchentes, diz que a família teve condições de lidar com os custos: foram US$ 500 mil ao longo dos 13 anos de tratamento. “Só que não é só o dinheiro; a dedicação é em tempo integral. Você tem de fazer pesquisas, ir atrás das triagens clínicas, lidar com as seguradoras, gerenciar o dinheiro”, conta. E diz que teme por aqueles com menos recursos, especialmente os pacientes que têm de usar as economias para pagar por um tratamento com poucas chances de dar certo.

A expressão “medicina de precisão” sugere um alto nível de sucesso – e, embora esses triunfos tenham de ser celebrados, os fracassos precisam ser reconhecidos, como lembrete do quanto ainda temos de aprender. “Não devemos fingir que ele oferece algo que não existe. Não estou dizendo que não se deve tentar; só acho que não se pode alimentar falsas esperanças”, conclui Primiano.

Liz Szabo é repórter do “Kaiser Health News”.
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