Em discurso em tom de campanha, dirigido à platéia presente ao jantar pelos 26 anos do PT, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou notável condescendência com os companheiros de agremiação envolvidos em graves denúncias de irregularidades. "Errar é humano", disse Lula, referindo-se aos petistas "que erraram". O presidente da República, num autêntico exercício de cinismo semântico, comentou as seqüelas que as denúncias deixaram no partido. "Eu sei quantas vezes vocês ficaram magoados. Já cometemos erros, mas temos muitos acertos", frisou Lula. Os pequenos erros mencionados pelo presidente derrubaram o ex-ministro José Dirceu, destituíram dezenas de diretores de estatais e mandaram para o espaço a cúpula do partido de Lula. Mas para o presidente, que não sabe nada e não vê nada, tudo não passou de uma experiência adversa. "Temos que aprender a lidar com essas adversidades, e, quando cometemos erros, não termos vergonha de admitir que erramos. Pedir desculpa é uma grandeza, sobretudo quando a gente pede desculpas para o povo", concluiu o presidente.
O governo Lula, seguindo rigorosamente os cânones da práxis (a manipulação da verdade se justifica na luta pelo poder), instaurou a cultura do cinismo na vida pública deste país. A simples leitura dos jornais oferece um quadro assustador da estratégia. Esbofeteia-se a verdade numa escala sem precedentes. As responsabilidades submergem num caldo pastoso e amorfo. Ninguém sabe. Ninguém viu. Vejamos, ao acaso, caro leitor, alguns registros da crônica política (ou policial) neste dramático lusco-fusco da cidadania.
Tudo começou com as denúncias de Roberto Jefferson. O ex-deputado afirmou que denunciou a existência do mensalão a Lula em janeiro do ano passado. A versão foi confirmada pelo ex-ministro da Coordenação Política, Aldo Rebelo. O governador de Goiás, Marconi Perillo, afirmou que relatou a Lula o pagamento de mensalão a parlamentares da base aliada. Tais diálogos não foram desmentidos e seriam suficientes para configurar crime de prevaricação. Ademais, todos os envolvidos no suposto escândalo, direta ou indiretamente, tiveram algum aval, administrativo ou de confiança, do presidente da República. José Dirceu foi nomeado "primeiro-ministro" por Lula. Desde o caso Waldomiro, Dirceu ficou numa desconfortável berlinda. Mas Lula o manteve no cargo. Só saiu, como todos sabem, quando Roberto Jefferson afirmou que Dirceu acabaria arrastando o presidente. Delúbio Soares, pivô do escândalo, e José Genoíno, ex-presidente do PT, não são estranhos ao presidente. São amigos e confidentes de longa data. É uma pena que os brasileiros não possam ter acesso ao ilustrativo Entreatos, sugestivo filme de João Moreira Salles. O documentário revela os bastidores da campanha presidencial de 2002. Lá fica patente o grau de intimidade que existia (e continua existindo) entre Lula e alguns dos principais protagonistas dos episódios de corrupção. O veto à circulação do documentário foi uma decisão do seu diretor.
O ex-presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Tarso Genro, num discurso indignado e moralizante, prometera promover a "refundação" do partido. Ora, a expressão cunhada por Genro indicava o grau de decomposição a que chegara o partido do presidente Lula. Pois bem, caro leitor, em posterior reunião do diretório nacional da agremiação, o campo majoritário, sob a batuta efetiva do ex-ministro José Dirceu, aprovou um documento suave nas autocríticas, mas contundente no ataque "às estratégias oportunistas da direita" para "abreviar o mandato popular, legal e legítimo, do presidente Lula". Ao mesmo tempo, foi sepultada a anunciada intenção de Tarso Genro de levar o partido a negar legenda para as próximas eleições aos seus parlamentares que renunciassem aos mandatos. Quer dizer: no partido do presidente, o crime compensa.
Vislumbro no comportamento dos acusados dos supostos esquemas de corrupção uma estratégia muito clara, mas perigosa para a credibilidade das instituições. Negam tudo. Assumem, eventualmente, a prática de crime eleitoral. E apostam, confiantes, numa redonda absolvição judicial. Confiam, ademais, no cansaço provocado pela overdose das denúncias, na memória curta dos brasileiros e na cumplicidade escandalosa de inúmeros parlamentares. Esquecem, no entanto, que o Ministério Público e o Judiciário, não obstante seus problemas, funcionam. E a máquina da justiça está andando. Felizmente. Recentemente, sem alarde, a Polícia Federal indiciou Duda Mendonça por evasão de divisas e lavagem de dinheiro. É a primeira peça da engrenagem judicial. E a imprensa, pode estar certo o caro leitor, não deixará a peteca cair. Cumprirá seu papel de memória da cidadania.
Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco Consultoria em Estratégia de Mídia Ltda.
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