Procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Dá uma certa melancolia pensar que a maior parte do contingente de brasileiros que se diz de esquerda, aquela inscrita e/ou influenciada pelo PT, aquela mesma que participou e usufruiu de longos anos do poder federal, tenha se posicionado desde sempre contra a Operação Lava Jato. Tal atitude não é fruto da intuição de grandes líderes, e sim por saberem os cabeças do partido, desde o começo da Lava Jato, que desse novelo emaranhado iria ser destrinchado algo que precisava ficar escondido para sempre. Não ficou, para o bem da nação, e o processo se desencadeou desabridamente até o presente. A melancolia diminui um tanto quando nos damos conta de que a esquerda não tem só uma face, e há esquerdas de origem comunista, socialista ou social-democrata que entenderam a Lava Jato como algo especial no espectro político-cultural brasileiro e torcem por sua continuidade e seus efeitos. E há muito mais gente na direita e no centro que acredita na Lava Jato não somente como um instrumento de quebra da hegemonia petista, mas como uma ferramenta civilizacional brasileira. É nesse espírito que este artigo foi escrito.

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A Lava Jato já processou algumas centenas de suspeitos, julgou igual número deles, condenou algumas dezenas, além de ter devolvido bilhões de reais às estatais devastadas e aos cofres públicos arrombados, e ainda assim a teima de que essa operação é irregular e ilegítima, de que foi criada para prender o ex-presidente Lula e facilitar a entrada do capital estrangeiro para dominar a indústria e a alma dos brasileiros, continua a dominar as mentes e os corações de milhares de petistas e filopetistas brasileiros, além de algumas centenas de pessoas vulneráveis a esse discurso pelo mundo afora.

Há de se corrigir essa visão deturpada e infeliz sobre a Lava Jato e ver por um ângulo mais aberto o quanto ela pode significar para a concretização de uma aspiração do brasileiro por uma ética privada e pública mais consistente e digna para a nação brasileira.

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É de recordar que a operação surgiu e passou a ser conhecida publicamente a partir de março de 2014, quando procuradores federais baseados no Paraná, junto com equipes da Polícia Federal, focalizados na 13.ª Vara Federal, então dirigida pelo juiz Sergio Moro, descobriram que o doleiro Alberto Youssef, notório já por ter sido processado por crimes de igual natureza e recém-preso em Brasília, estava enredado numa vastíssima rede de corrupção de altíssimo teor que atingia as cúpulas dos partidos governistas, especialmente PT, PMDB, PP, PTB, PR e outros menores, além de umas centenas de políticos, altos funcionários de empresas estatais importantes, dirigentes e gerentes de bancos públicos, donos e gerentes de bancos privados, paraísos fiscais em dezenas de países, e todo o emaranhado nacional e internacional de doleiros e conexões que facilitam os crimes de corrupção, transferências bancárias legais e ilegais e lavagem de dinheiro. É de notar em especial que até bancos consagrados da alta finança internacional, como aqueles sediados na veneranda Suíça, estavam envolvidos, acobertando e contribuindo sobremaneira para os mirabolantes e esconsos processos de receptar, esconder e lavar dinheiro fruto de corrupção mundo afora.

Sentimos que talvez fosse possível acreditar que o Brasil seria finalmente passado a limpo

Foi a Lava Jato que nos mostrou, de forma nua e crua, no decorrer de alguns anos, o que se passava bem nas nossas barbas, algo de que sempre desconfiáramos, mas sem saber ao certo sua inacreditável potência, seu alcance e toda a sua trama, em todas as suas portentosas ramificações. As operações policiais, as investigações judiciais, as pesquisas bancárias via internet, as análises criteriosas, as decisões judiciais, as divulgações foram despejando cada vez mais claramente dados e mais dados, informações perquiridas, analisadas e comprovadas – tudo demonstrando que a corrupção brasileira era algo imenso, descomunal, rizomático, que atravessava todos os poros da relação entre poder público e agentes econômicos e políticos. Atônitos, desarmados, espavoridos, bestificados, mas esperançosos e alertas, os brasileiros se debatiam e se indagavam se sempre se dera assim, nesse nível estratosférico de cupidez, a nossa velha corrupção, herança do patrimonialismo português, ou se a coisa teria piorado por deterioração ou intensidade de safadeza e cinismo, ou alcançado tal nível de disseminação que contaminara todo o corpo social brasileiro. Quem, com algum poder ou prestígio político, estaria fora dessa trama horrenda?

Com o passar do tempo, com os processos abertos e em persistente andamento, os julgamentos, as prisões, as delações premiadas, as sentenças jorrando com consistência e correção, sentimos que talvez fosse possível acreditar que o Brasil seria finalmente passado a limpo, ao menos na matéria de atacar a corrupção e punir os corruptos, fossem eles de que partido fossem, a qual cargo político pertencessem, se eleitos ou nomeados, que tivessem a fortuna e o poder econômico que tivessem.

Ainda não temos certeza sobre qual ponto de inflexão cultural nos encontramos. Se a Lava Jato veio para ficar e deixar uma marca de correção e justeza, ou se terá sido tão só um breve episódio em mais uma etapa que se fecha para o Brasil se fortalecer e se ajustar no mundo.

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Pois é num estado de intensa ansiedade em que hoje nos encontramos, com esperança e temor se mesclando a cada dia, a cada notícia de mais uma operação para deter corruptos ou a cada ação de algum membro do Supremo Tribunal Federal exarando decisões estapafúrdias em defesa de algum condenado, réu, indiciado ou suspeito efetivo da Lava Jato. Estamos perante o nosso destino de nação em formação, ora projetando a continuidade desse processo de libertação brasileira de uma de suas mais horrendas e prejudiciais características culturais, ora na iminência de ver jogado por terra o processo pelo qual vislumbramos o nosso caminho para a entrada no mundo contemporâneo da ética e da responsabilidade pessoal e social.

A corrupção brasileira, como outros grandes defeitos da cultura brasileira, está inserida, faz parte integral da nossa frágil, fluida e cambiante ética – ou falta de ética, como comumente se fala. Ética é algo que quase todos os brasileiros veem como uma qualidade rara entre os seus. Mormente se diz que os brasileiros não são éticos, nem mesmo seus vizinhos ou parentes. Mas quem fala assim costumeiramente se põe em outro patamar: considera-se ético, isto é, portador de qualidades que se encaixam em sua visão do que seja ética. Não se aproveitar da fraqueza do outro, por exemplo; não roubar, naturalmente; não desejar a mulher do próximo, por certo; não se aproveitar da posição de poder para benefício próprio, evidente; não confabular com outros para ações ilícitas, sim, sim.

Mas tudo isso acontece, e a corrupção aconteceu desmesuradamente. E, como sabemos, não faltam justificativas e desculpas para alguém julgar seu próprio comportamento, ainda que concretamente de natureza antiética, como se ético fosse. O ladrão de galinhas rouba e justifica que é para se alimentar, sem o que passaria fome e morreria. O profissional liberal oferece desconto ao cliente para ele não declarar no seu Imposto de Renda para não ter de pagar imposto, justificando seu ato como favorável a ambas as partes e contra uma instituição que arrecada injustamente para aplicar os recursos de maneira perdulária e frequentemente antissocial. O político, sabemos tão bem, tem mil modos de justificar a venda de seu voto e participar de desvios de recursos e verbas. O administrador público que desvia dinheiro ou vende facilidades a terceiros o faz com claro sentimento de cinismo, atributo que vê como fundamental para sobreviver neste mundo cão. Já os esquerdistas no poder apelam para uma alta ordem moral, a justiça proletária, derivada da santificação do proletariado como classe universal para benefício do qual tudo é possível, como justificativa para roubar bens, desviar recursos, achacar empresários, dilapidar patrimônio, enriquecer pessoalmente e, especialmente, ser conivente com falcatruas dos parceiros e descreditar e abandonar propositalmente investimentos públicos.

Por tudo isso, pode-se concluir que o brasileiro, se não é, por raridade, ativo ou coativo na corrupção, sabe muito bem dela e sobre ela, e quase sempre a pratica cinicamente, mas nunca deixa de firmemente criticar os outros por ações que ele mesmo já praticara. Os outros é que são o mal, já dizia Sarte; isto é, na versão brasileira, os outros é que são os culpados pelas faltas e defeitos do mundo. Nunca você mesmo.

Deste modo, o Brasil, visto pelos próprios brasileiros, estaria condenado a ser um país que não somente tem corruptos, como todos os demais, mas os festeja por seus atos e os brinda com facilidades para suas proezas. Destino desolado.

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Por outro lado, e aqui eu evoco em apoio os barnabés ordeiros, as almas ingênuas e desapegadas de vaidades, os otimistas inveterados e os últimos crentes num raro humanismo brasileiro: se alguém se diz ético e correto em suas ações, deve ter algum motivo para tanto. Certamente ele entende o que significa não ser ético, porque o seu suporte cultural em geral indica o que deve ser ético e o que não pode ser ético. Se ele descamba para atitudes e ações claramente antiéticas, deve sentir que algo diferente poderia ter sido feito; ele poderia ter se comportado adequadamente, ter sido correto pelos simples padrões de sua cultura. Só assim é possível dizer que todo ser humano, e aqui coloco o brasileiro em realce, é um ser ético em potencial. Salvo aqueles cujas ações desabridamente antiéticas, manifestamente antissociais e criminosas não conseguem mais ser suportadas nem pelas instituições sociais e pelo amor cristão.

Enfim, para equilibrar o pessimismo vigente em nossa cultura, podemos conjecturar que tanto a atitude do cínico antiético quanto a atitude do ser ético são potenciais que estão inseridos dentro da alma individual e do corpo social do brasileiro. E é por isso que se pode pensar em almejar que uma ética brasileira, a ser devidamente formulada ou experimentada, possa vir a se tornar um ideal a ser alcançado pelo brasileiro.

Resta dar uma simples explanação sobre o que seria uma ética à brasileira para que possamos aquilatar a Lava Jato e seu papel na formação desta ética. Para começar, não seria uma ética tão diferente das éticas de outras culturas, pelo menos as ligadas à civilização ocidental, mas teria algumas características próprias, fruto de sua qualificação formativa pela mestiçagem cultural, que vale a pena reconhecer neste momento. Uma primeira questão, de sentido geral, seria entender que toda ação humana é necessariamente ação individual e a responsabilidade, portanto, é intrinsecamente individual, o que significa que nunca deve ser atribuída a um coletivo ao qual o agente pertença. A não ser, evidentemente, que esse coletivo seja uma organização, criminosa ou não, que efetivamente se comporta em comum acordo com as decisões individuais. Mesmo ai, há teores distintos de responsabilidade individual a reconhecer.

Em segundo lugar, a ética brasileira deve ser entendida como brotando da moral brasileira, que é, por sua vez, o conjunto de comportamentos reconhecidos, praticados e aceitos, se não propriamente festejados, pela cultura brasileira tradicional. No caso da corrupção, por exemplo, a moral brasileira tradicional exige que a pessoa seja presa e punida, ainda que se conforme, ainda que reclamando que isso raramente acontece com os ricos e poderosos. Por isso é que, para muitos que se sentem resguardados pela moral brasileira, soa quase como blasfêmia a prisão de alguns grandes políticos nacionais pela Lava Jato. Com efeito, até se darem conta de que algo extraordinário estava acontecendo no Brasil, diversos grandes empresários submetidos ao constrangimento do julgamento e de suas prisões se sentiram horrorizados, como se estivessem vivendo em outro país e forçados a acatar outra ética. Portanto, a atitude de uma nova ética exigiria a equanimidade da punição a tal crime. Nesse sentido, a ética seria não mais que aperfeiçoamentos da moral tradicional brasileira para se equalizar com as exigências do mundo contemporâneo.

Não há razão nenhuma para se destituir a Lava Jato de seu papel na história recentíssima do Brasil

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Em terceiro lugar, ética é o instrumento cultural que tem como objetivo social estabelecer e tentar impor normas e atitudes de comportamento privado e social aos membros de uma sociedade para equilibrar as imensas diferenças inatas e, especialmente, as socialmente construídas entre eles, com o fim último de harmonizar o conjunto da sociedade e dar sentido moral e transcendente aos seus membros. Esse ponto implica necessariamente que, dadas as condições por que passam as sociedades contemporâneas, a ética deve ter como premissas básicas a capacidade de manter as bases da harmonização da sociedade, bem como de ser flexível para atender as demandas novas mais consistentes.

O quarto ponto a ser considerado é que toda ética, por não ser absoluta, nem totalitária, tem de ter um ponto de fuga a suas exigências normativas. Ou, em outras palavras, a ética tem de conter o perdão, de algum modo qualificado, aos que infringem as suas normas, mesmo aquelas mais graves. Isto se torna cada vez mais necessário na medida em que se entende que o comportamento humano não se realiza simplesmente por decisões conscientes, fundamentadas no respeito à sociedade ou à tradição, ou mesmo a mandamentos religiosos; ao contrário, o comportamento no mais das vezes emerge de sentimentos inculcados no inconsciente humano, frutos por vezes indesejados da experiência vivida por cada pessoa, em muitos casos recalcados por compulsão de culpa, o que influencia sobremaneira no comportamento ou nas atitudes conscientes que podem se realizar de modo até contrário ou pernicioso ao esperado em determinado momento. Tal excepcionalidade, no entanto, deve ser contemplada cum grano salis para que não se transforme em justificativas e atenuantes para a punição necessária à quebra de normas éticas essenciais para a preservação do equilíbrio da sociedade. Aqui a ética tem de estar segura sobre a diferença entre roubar uma galinha e roubar uma estatal.

Voltando ao tema da Operação Lava Jato, já que é ela que está no centro de nossa motivação ao escrever esse artigo, e ainda não temos nenhuma perspectiva de formular nem intelectualmente (por processo consciente), nem culturalmente (por processo histórico e espontâneo da sociedade brasileira), uma cartilha sobre ética brasileira, valem os preceitos morais que a nossa moral tradicional determina, bem como os poucos preceitos e atitudes desencadeados por uma nova ética. Assim, no caso da corrupção dos últimos anos, vale entender que a punição a todos os envolvidos é essencial para o caminho da formulação de uma nova ética brasileira. Não pode valer a atitude prévia de que ricos e poderosos estão eximidos de cumprir prisão por causa de seu status social superior. A democratização da punição é fundamental para fortalecer a democratização das condições de equanimidade social e econômica no Brasil.

Os inimigos e adversários menos cruentos da Operação Lava Jato têm alguns variados motivos para chegarem ao ponto em que chegaram, desde tramoias internas de associações de profissionais liberais, ao apoio de alguns grandes jornais, e à agressividade dos seguidores nas mídias sociais. Alguns, especialmente os políticos de esquerda e seus seguidores, veem essa campanha como uma questão de vida ou morte. Precisam derrubar Sergio Moro e Deltan Dallagnol para dar cabo da Lava Jato. Foram arregimentados alguns adversários menos agressivos que procuram cabelo em ovo, por assim dizer, ao ver nas falas hackeadas do Telegram de Dallagnol sinais de conluio e conspiração que demonstrariam propósito ignóbil nas ações e decisões judiciais do juiz Moro. Por mais que se insista e persista, essas falas, verdadeiras, falsas ou editadas, são muito simplórias para indicar o que os adversários de corte jurídico pretendem.

Não obstante, os inimigos e adversários não desistirão e, como na fábula de Esopo sobre o lobo incriminando de qualquer jeito o cordeiro por poluir sua água de beber, sempre buscarão mais argumentos ineficazes e falsos. Seja como vier a ser, não há razão nenhuma para se destituir a Lava Jato de seu papel na história recentíssima do Brasil. Só a bruta violência do poder judicial (vinda do STF, contra Moro; e, no caso de Dallagnol, vinda do CNPF) ou algo inesperadamente insuspeitável poderá melindrar efetivamente os trabalhos e os resultados da Lava Jato. Possivelmente os seus efeitos culturais e éticos já estão exercendo influência em nossa sociedade. Que assim seja!

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Mércio Gomes é antropólogo, professor da UFRJ e autor de "O Brasil inevitável".