As cenas filmadas de formandos em Medicina da Universidade Estadual de Londrina invadindo um hospital aos gritos, soltando rojões e aterrorizando os doentes internados ainda estão vivas na memória das pessoas. Depois de uma reação enérgica da Reitoria da UEL, as coisas seguiram seu rumo natural, típico do país dos coitadinhos: a decisão do reitor de suspender a formatura dos participantes (coitadinhos...) que haviam sido identificados pelas câmeras em circuito fechado foi revogada porque entre um data máxima venia e outro, a Justiça deixou barato. E tudo acabou em uma apressada aula de ética ministrada na solenidade de formatura. Assim, os formandos (coitadinhos) puderam sair ilesos da proeza. O espetáculo deprimente de rapazes e moças quase médicos se comportando como uma turba num estádio de futebol logo cairá no esquecimento. Pouco importa, pois, pelo jeito, o esquecimento mais grave foi o do juramento hipocrático que os obriga a agir com compaixão e empenhar seus talentos para salvar a vida e a saúde de seus semelhantes e não para ameaçá-los.

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Ética? Não acredito que uma palestra proferida para ouvidos desatentos e insensíveis ensine alguma coisa a quem foi capaz de invadir um hospital aos berros soltando rojões. Quem sabe, exemplos de vida sejam mais eficazes em incutir nessa turma valores de responsabilidade e preocupação com a vida e o bem-estar do próximo. Dois exemplos amargos permitem entender o verdadeiro significado dessas categorias superiores do espírito humano que se mostraram tão carentes: falo do falecimento do Doutor Moysés Paciornik e do anunciado afastamento de Giovanni Loddo da diretoria do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná.

Doutor Moysés personificava, com perfeição, a figura quase paternal do médico em que se podia confiar: sereno, incapaz de rompantes e de ataques de estrelismo, infundia nos pacientes segurança e tranquilidade em momentos de grande tensão e fragilidade. Estudioso e ao mesmo tempo audacioso, não teve receio de ir buscar nas práticas primitivas dos indígenas brasileiros, a experiência do parto de cócoras que adaptou para as mulheres modernas; hoje, suas pesquisas o qualificam como um estudioso da antropologia médica, mas, em uma sociedade mesmerizada pela modernidade como a nossa, seu recurso aos incivilizados para ensinar algo aos ultracivilizados enfrentou o ceticismo de muitos e até a disfarçada ironia de alguns, até que as técnicas que desenvolveu fossem amplamente aceitas no mundo acadêmico. Na sua pregação, Dr. Moysés nunca precisou da estridência verbal para convencer os demais: falava baixo e calmamente, certo de que a solidez de suas convicções promoveria, mais cedo ou mais tarde, a conversão de seus ouvintes. Tinha espírito público? Existe prova mais eloquente de seu interesse pelos semelhantes do que a insistência com que lutou pelo estabelecimento de programas de prevenção e profilaxia dos cânceres femininos, muito antes de que os sistemas de saúde pública despertassem para a importância do assunto? Moysés Paciornik foi uma figura inesquecível.

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Giovanni Loddo felizmente não nos abandonou definitivamente como o Dr. Paciornik, mas muito em breve deixará a direção do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Imagino que saia cansado de anos e anos de luta inglória para tentar eliminar a infeliz rotina de incompreensão e de insensibilidade dos governantes que mantêm o nosso HC de Curitiba permanentemente ameaçado de fechamento por falta dos recursos mais comezinhos. Giovanni Loddo era, em matéria de temperamento, o oposto do Dr.Moysés: um oriundo mediterrâneo, intenso, loquaz, sanguíneo e imagino seu esforço em engolir sapos e incompreensões durante vários anos para não deixar a nave soçobrar. Que ganhou em troca? Um modesto salário, a impaciência e a incompreensão dos burocratas empedernidos, nada mais. Porém, que ganhamos nós em troca? A preservação de um gigantesco patrimônio humano e científico acumulado no HC, ameaçado permanentemente de ser jogado no lixo pela estupidez crônica de alguns círculos burocráticos.

Há pessoas que quando se afastam de uma organização, as deixam mais pobres: Giovanni Loddo é uma dessas pessoas. E há indivíduos que, quando se vão desta vida, deixam o mundo mais pobre: Moysés Paciornik foi um deles.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Doutorado em Administração da PUCPR.