Ilustração: Marcos Tavares/Thapcom| Foto:

É ingênuo negar que vivemos um período de elevadas tensões. Os conflitos entre grandes potências estão de volta. A péssima notícia para todos é que também estão de volta as práticas unilaterais. Este é um caminho comprovado para elevar as tensões e conduzir a uma guerra mundial.

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Fazer justiça pelas próprias mãos gera ajustes assimétricos e instáveis. No curto prazo, pode parecer vantajoso usar da retorsão (medida que um Estado adota com o intuito de revidar de maneira idêntica à violência ou prejuízo causado por outro Estado), da represália (alegando a existência de uma injustiça ou da violação de um direito, praticar medidas violentas contra bens ou pessoas do Estado ofensor) ou da compellence (geralmente ameaçando a punição ou praticando um prejuízo reversível como forma de persuadir um oponente a desistir de algo). No longo prazo, o clima de desconfiança e as constantes mudanças na legislação atrapalham os investimentos produtivos e o comércio internacional.

Depois de duas grandes guerras no século 20, o debate acadêmico e a política internacional deram vitória ao liberalismo internacional. Montou-se um sistema multilateral, com diplomacia aberta e oportunidade de ampla participação tanto governamental quanto empresarial e dos demais segmentos da sociedade civil organizada. Mas a recente guerra comercial entre Estados Unidos e China só prova que o liberalismo não é um valor assegurado, nem nacional nem internacionalmente.

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Não parece ser o interesse nem de EUA nem da China levar a disputa para a OMC

No mundo real, a abertura não ocorre pelo simples fato de ela ser a melhor medida. A liberalização construiu-se – e precisa ser mantida – na base da reciprocidade de oportunidades. Esse ensinamento vem de Adam Smith e persiste na estrutura dos encontros diplomáticos que negociam a abertura comercial.  Quando sentam para negociar, os países exigem concessões mútuas; para liberalizar certo setor, exigem que o outro país abra uma área específica de sua economia. Isso é feito em larga escala, de forma a construir um sistema no qual – pretende-se – os segmentos improdutivos sejam progressivamente eliminados, percam força e capacidade de fazer lobby em favor do protecionismo, enquanto os setores competitivos crescem, geram emprego e renda, ganham força e capacidade de lobby a favor da constante liberalização.

É um processo. As forças contrárias são muitas, e a mais forte de todas é o discurso nacionalista: meu país acima de tudo e de todos, eis o erro!

Rodrigo Constantino: O furacão Farage e a destruição do centro na Europa (publicado em 6 de junho de 2019)

Nem a Organização Mundial do Comércio (OMC) nem a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) têm status supranacional. Não podem agir de ofício contra violações aos compromissos firmados pelos países. Como todo o Direito Internacional, esses organismos multilaterais são formados na base voluntarista. Ninguém é obrigado a participar ou se manter comprometido. Da mesma forma, os Estados Unidos, parte da OMC, não eram obrigados a reconhecer a China como economia de mercado e permitir que ela ingressasse na entidade, mas fizeram. Os EUA também não eram obrigados a negociar e concordar com o Nafta, mas o fizeram.

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Hoje há um discurso e uma prática revisionista unilaterais. A retórica de Donald Trump, que acusa os parceiros de terem abusado da boa vontade dos EUA ou da ingenuidade de governos americanos passados, é de rir. Os Estados são racionais, os governos são racionais; quando muito, podem estar mal informados. Este é um discurso populista que pode ter apelo junto ao eleitorado, mas que não é bem visto na diplomacia, causando um estrago gigantesco para a reputação nacional. O país quebra a cláusula de ouro, o pacta sunt servanda. Ganha fama de violador de compromissos. As demais nações ficam reticentes em firmar acordos e temem que os existentes sejam abandonados.

Opinião da Gazeta: Embate de gigantes (editorial de 27 de maio de 2019)

Leia também: As eleições europeias e o bode na sala (artigo de Dorival Guimarães Pereira Júnior, publicado em 10 de junho de 2019)

Quebrar compromissos multilaterais é ainda mais perigoso. Não prejudica apenas a relação bilateral, mas põe em risco todo o sistema construído para gerar e garantir a ordem no sistema internacional.

Os arranjos multilaterais não podem fazer nada. Os que existem são meros fiscais dos acordos. A OMC só pode agir quando um país acusar outro de violar os compromissos assumidos. Quando isso ocorre, os países são convidados à negociação; se ela for malsucedida, dará espaço a um painel que pode, ao fim do processo, conceder direito de retaliação ao prejudicado pelas distorções e ilegalidades do outro. Entra-se em novo ciclo de limitação do comércio bilateral entre os envolvidos.

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Não parece ser o interesse nem de EUA nem da China levar a disputa para a OMC. A China tem respondido as acusações dos EUA com acusações inversas, alegando que o governo dos EUA mente ou pratica “terrorismo econômico”. Os EUA seguem elevando o tom, com palavras fortes e incomuns no jargão diplomático. Ambos impõem novas limitações ao comércio recíproco.

O caso da OMC é sensível. Criada como forma de aperfeiçoar os painéis de solução de conflito e desembolar novas rodadas de liberalização, a OMC entregou apenas parte do esperado. Países que formam blocos para ganhar peso nas negociações e a cláusula do single undertaking têm travado a Rodada Doha. A opção da liberalização através de acordos bilaterais é uma saída momentânea, mas que levará a ajustes assimétricos no longo prazo.

Vladimir Feijó é professor dos cursos de Direito e Relações Internacionais do Ibmec Belo Horizonte.