A descoberta de que estudantes receberam nota máxima na redação do Enem apesar de cometer erros grosseiros de português não deveria surpreender ninguém: faz parte de um fenômeno muito mais amplo, que é a nossa complacência com a falta de qualidade em tudo ou quase tudo que fazemos ou que consumimos.

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É a mesma lógica que leva a indústria brasileira a ter um índice de defeitos 12 ou 15 vezes maior que a indústria japonesa ou alemã; que leva os produtos brasileiros a ocuparem sempre um lugar menor nos rankings de qualidade; que leva os prédios recém-construídos a apresentar problemas de vazamento e de instalações, porque os projetos são deficientes e a habilidade de verdadeiros pedreiros é substituída pela improvisação dos "meias-colheres". É a mesma lógica que resulta em que tenhamos em nosso país uma multidão de prestadores de serviços tecnicamente deficientes, autodidatas que recorreram ao método da tentativa e erro para aprender. Ou na medicina, em que faculdades de baixa qualidade formam doutores idem. Ou em tudo o mais. É, finalmente, a mesma complacência que dedicamos aos Calheiros, Sarneys, Henriques Alves e similares, que fazem da política no Brasil o que ela é.

Mas que fez o Inep? Declarou que os alunos que estão acabando o ensino médio ainda se encontram em "processo de letramento" e que "um texto pode apresentar eventuais erros de grafia, mas pode ser rico em sua organização sintática, revelando um excelente domínio das estruturas da língua portuguesa". "Excelente domínio", diz o Inep... O problema está nesse aviltamento da excelência, nesse abastardamento da qualidade.

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Não vou retomar a polêmica do livro Por uma Vida Melhor, que defendia que a insistência em ensinar uma norma culta de linguagem nas escolas era simplesmente uma manifestação de elitismo e que, portanto, nada haveria de errado no professor aceitar os "nós vai", "a gente vamos", "nós pega o peixe", pois é assim que "o povo fala". Muitos educadores "progressistas" acreditam que esse tipo de atitude é "transformadora"; eu, como jurássico, acredito que a escola deve zelar para que seus egressos falem e escrevam de acordo com a norma culta, pois falar e escrever errado não contribui para a ascensão social de ninguém, muito pelo contrário. Nisso e em tudo o mais, na engenharia, na medicina, na indústria, no comércio, na varrição de ruas e no desentupimento de bueiros, deveríamos perseguir a excelência real e não essa excelência meia-boca, autocomplacente com nossas próprias deficiências.

Em homenagem-tributo à multidão de excelências meias-bocas que povoa nosso país, vou fazer uma exceção. Se Noel Rosa tivesse escrito "nosso amor que eu não esquesso... e que teve seu comesso em uma festa de São João", eu continuaria a achar que Meu Último Desejo é um dos poemas mais lindos da música brasileira. Mas o meu querido e inesquecível professor de português Antonio Fagin diria: "que beleza de poesia. Pena que é só para ser ouvida, pois lida é um desastre de ‘letramento’". E não daria nota 10 a ele.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.