Os ataques nucleares às cidades japonesas de Hiroxima e Nagasáqui, respectivamente, nos dias 06 e 09 de agosto de 1945, devem ser lembrados como um dos eventos mais trágicos conduzidos por seres humanos contra seus semelhantes. Decorridos 78 anos após o lançamento das bombas atômicas e ao longo destas quase oito décadas, vivemos sob a ameaça de um conflito nuclear de proporção global. Em alguns momentos, devido ao acirramento de animosidades entre as potências nucleares, vivemos o acirramento dessas disputas; mas, na maior parte do tempo, vivenciamos apenas o desconforto de saber que o arsenal nuclear mundial seria capaz de aniquilar a humanidade algumas vezes.
Desprezando as tentativas desde 1946 que não se consolidaram, o histórico de contenção ou redução das armas nucleares entre as duas principais potências detentoras destes artefatos, Estados Unidos da América (EUA) e URSS/Rússia, teve início em 1968 com o NPT (Tratado de Não Proliferação Nuclear), seguido do Acordo SALT 1 (Conversações sobre a Limitação de Armas Estratégicas) em 1972, o INF (Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário) de 1987, START I (Tratado para Redução de Armas Estratégicas) em 1991 (o SALT 2, de 1979, não foi formalizado devido à invasão do Afeganistão pela URSS, embora ambas as partes aderissem informalmente ao acordo), o START II (não ratificado pelos EUA) e o NEW START em vigor desde 2011, cuja participação russa foi recentemente suspendida unilateralmente, ao impor restrições às atualizações e notificações semestrais de dados e inspeções in loco em seus arsenais atômicos. Apesar de todos esses tratados e dos que estarão por vir, a sensação é de vivermos à sombra de um conflito apocalíptico. Esse é o “estado da arte” permanente da capacidade de autodestruição da espécie humana.
Neste espaço, quero discorrer sobre a relativização que ora ou outra vem à tona em alusão aos ataques nucleares ao Japão e de sua “necessidade”. No contexto de um conflito militar de abrangência restrita a uma região, tal como ocorre atualmente entre a Rússia e a Ucrânia, nos deparamos com a alternativa da redução de danos (entenda-se, a redução da morte de seres humanos) caso a guerra se estenda por muito mais tempo, agravada pelo uso de recursos militares convencionais cada vez mais poderosos. Nesse contexto, o governo russo, por dificuldades no enfrentamento militar convencional contra as forças de resistência do governo ucraniano, abastecido por países europeus e pelos EUA, ou para abreviar o número de baixas de soldados russos, aventou a hipótese de utilizar arma nuclear tática em solo ucraniano, projetando uma rendição incondicional do chefe de Estado daquele país, diante de tamanha demonstração de força. Em artigo anterior, discorri sobre o perigo de se normalizar o uso deste tipo de armamento, sob a falsa alegação do agressor, de se tratar de arma de pequeno poder destrutivo e ao mesmo tempo possibilitar a redução do número de vítimas, caso o conflito se prolongue.
É difícil saber com precisão o número de mortos entre os soldados e os civis russos e ucranianos até o momento. Os países em conflito costumam minimizar suas baixas militares e maximizar as mortes de seus civis e das baixas militares do inimigo. Há várias estimativas sobre o número de militares e civis mortos, como por exemplo, de que até o momento entre 20 mil e 40 mil militares lutando pela Rússia perderam suas vidas. Do lado da Ucrânia, entre uma e duas dezenas de milhares de civis, e talvez o mesmo número de soldados. Considerando que essa guerra, que já dura um ano e meio, perdure por meses, poderíamos supor que a utilização de uma arma nuclear tática sobre a Ucrânia subjugaria de tal forma seu governo, que ele capitularia, acordaria com o governo russo uma “divisão justa” de seu território e dos espólios da guerra, evitando a perda de muito mais vidas, caso o conflito se prolongasse.
Ao relativizarmos os ataques nucleares às cidades de Hiroxima e Nagasáqui, aceitamos que o uso de uma arma de destruição em massa poderia dizimar uma cidade e seus cidadãos em segundos
Essa é uma alternativa que nunca deveria ser cogitada quando se trata do uso de armas de destruição em massa. Além de que o uso militar de um armamento nuclear deva permanecer uma imoralidade absoluta, não se trata de uma comparação entre o número de vítimas fatais e feridos, mas da forma indefensável que este tipo de recurso militar inflige: trata-se de uma aniquilação instantânea de dezenas ou centenas de milhares de vidas de todas as espécies. Tanto isto é fato, que os horrores associados à II Guerra Mundial sempre estão relacionados às duas estratégias utilizadas de extermínio do ser humano: os campos de concentração nazistas e os ataques atômicos ao Japão.
Embora o número de mortes nos campos de concentração supere muitas vezes o número de vítimas das bombas atômicas, todo ano, nas duas primeiras semanas de agosto, esse último evento é lembrado em todo o mundo e é motivo de cerimoniais em memória das vítimas e como alerta sobre a capacidade de destruição de uma guerra nuclear.
Existem algumas estimativas do total da energia liberada por todos os explosivos utilizados na II Guerra Mundial. Uma delas foi feita por dois físicos, o norte americano Richard L. Garwin (1928-), designer responsável por uma das mais potentes armas termonucleares construída pelos EUA, a Ive Mike, de 10,5 megatons, onde 1 megaton (Mt) é igual a 1000 quilotons (kt). A bomba atômica de Hiroxima tinha poder explosivo de 13,5 kt, portanto, a Ive Mike era 780 vezes mais potente. O outro físico foi o russo Andrei Sakharov (1921-1989), designer das armas termonucleares soviéticas. A avaliação dos dois é de 3,0 Mt. Desses, 2,1 Mt foram utilizados pelos EUA e 0,9 Mt pelos demais países. Da parcela dos EUA, 1,4 Mt foram destinados à Alemanha e 0,7 Mt ao Japão. Se somarmos a energia liberada nas duas bombas atômicas lançadas sobre o Japão, a Little Boy de 13,5 kt (Hiroxima) e a Fat Man de 21 kt (Nagasáqui), obtém-se 0,0345 Mt, ou seja, “apenas” 1,15% de toda a energia dos explosivos da II Guerra Mundial e “somente” 4,93% de toda a energia dos explosivos lançados sobre o Japão, pelos EUA. Contabilizados nos 95,1% dos ataques norte-americanos ao Japão, está a cidade de Tóquio que sofreu com vários bombardeios aéreos, sendo um deles o mais arrasador e realizado em dois dias de março de 1945, quand cem mil japoneses perderam a vida.
Por que então só lembramos das bombas atômicas sobre Hiroxima e Nagasáqui? Por algumas razões, dentre elas: pelo enorme poder de destruição de uma única explosão dessa natureza, pelo fato de que existem milhares destes artefatos pertencentes a nove países, e porque nenhuma arma ou estratégia militar é capaz de gerar tantas mortes em tão curto intervalo de tempo. Nenhuma guerra convencional, por mais abrangente que fosse, e mesmo que utilizasse armamentos poderosos e sofisticados, teria como consequência o extermínio da vida na Terra. Uma guerra nuclear, mesmo que somente entre duas grandes potências nucleares, teria.
Portanto, ao relativizarmos os ataques nucleares às cidades de Hiroxima e Nagasáqui, quando contrapostos ao prolongamento do conflito EUA x Japão, aceitamos com indulgência que o uso de uma arma de destruição em massa poderia, em certas circunstâncias, dizimar uma cidade e seus cidadãos em segundos. Baseado numa média de vários relatórios sobre o tema, ocorreram aproximadamente 60 mil mortes instantâneas nas duas cidades japonesas, com 70% dos edifícios destruídos em Hiroxima e 40% em Nagasáqui. O adjetivo plural “instantâneas” sugere poucos segundos após a explosão.
Não é possível relativizar esses eventos. É uma atitude de compaixão, portanto, todos os anos, no mês de agosto, lembrarmos de Hiroxima e Nagasáqui como alvos de uma missão militar que jamais deveria ter sido planejada nem cumprida, como forma de homenagem às vítimas fatais, aos feridos e aos familiares sobreviventes. E ainda, execrarmos qualquer hipótese de uso de uma arma desta natureza num conflito bélico.
Dinis Gomes Traghetta é professor do Departamento de Física da UTFPR – Medianeira, palestrante e autor do livro “A Bomba Atômica Revelada”.
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