O presidente Lula durante encontro com evangélicos em setembro de 2022.| Foto: Ricardo Stuckert/PR.
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O conservadorismo político entre os evangélicos brasileiros é um fenômeno crescente e complexo, e que se destaca na atual conjuntura política. Pude analisar essa tendência com base em repostas de parlamentares autodeclarados conservadores e evangélicos, destacando suas visões sobre a política e o papel da fé nesse cenário, além de relacionar suas opiniões com a tradição conservadora ocidental.

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As entrevistas foram realizadas durante meu estágio de pós-doutorado no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (Labô) da Fundação São Paulo (PUC-SP) aos deputados Nikolas Ferreira (MG), André Fernandes (CE), Marco Feliciano (SP) e Sóstenes Cavalcante (RJ), e os senadores Magno Malta (ES) e Damares Alves (DF) e estão aqui resumidas.

O conservadorismo evangélico no Brasil remonta à chegada de missionários protestantes no século XIX, influenciados por correntes teológicas e políticas dos Estados Unidos e da Europa. A ideia de uma "nação cristã", promovida pelo puritanismo americano, teve impacto significativo na visão política dos evangélicos brasileiros, que adotaram um engajamento político conservador, especialmente a partir da Assembleia Constituinte de 1987.

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A influência da Teologia do Domínio, que prega a responsabilidade dos cristãos em liderar todas as esferas da vida, incluindo a política, é evidente, principalmente entre os pentecostais e neopentecostais. A Teologia da Prosperidade, que associa sucesso financeiro à aprovação divina, também desempenhou um papel importante no engajamento político de alguns grupos protestantes mais recentes. Adicionalmente, a doutrina da "batalha espiritual" posiciona a política como uma arena de luta entre o bem e o mal, legitimando a participação política ativa destes religiosos.

É possível identificar temas centrais que definem o conservadorismo político evangélico: a defesa da vida, da família, da fé e da liberdade econômica. Esses temas são derivados, antes de tudo, de uma cosmovisão cristã que vê na moralidade judaico-cristã

Nikolas Ferreira, o deputado mais votado em 2022, define o conservadorismo como uma "visão de mundo" baseada na preservação de instituições que resistiram ao teste do tempo. Para Ferreira, o conservadorismo deve preservar as tradições que se mostraram benéficas, orientando-se pela busca da verdade, com uma forte influência da moral judaico-cristã e do pensamento anglo-saxão, especialmente Edmund Burke.

Segundo Burke, em sua obra Reflexões sobre a Revolução na França, o conservadorismo se fundamenta na prudência e no respeito às tradições estabelecidas, como forma de garantir a estabilidade social. Para o pensador inglês, a verdade não é algo que deve ser reinventado, mas sim preservado através das instituições que historicamente demonstraram seu valor. O argumento de Ferreira sobre a "verdade que resiste ao tempo" ecoa diretamente essa premissa burkeana.

O deputado também destaca o papel da moral judaico-cristã como base da ordem social. Esta visão também encontra respaldo na obra de Burke, que enfatiza a importância da religião na formação de uma sociedade estável e moralmente ordenada. Para o pai do pensamento conservador moderno, a religião é um freio natural contra os excessos da racionalidade abstrata e do individualismo, garantindo uma coesão social que o progresso racionalista sozinho não pode oferecer.

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André Fernandes, ex-deputado estadual no Ceará e atual deputado federal, vê o conservadorismo como uma resposta à cultura dominante, sendo uma espécie de contracultura. Ele acredita que o conservadorismo busca preservar os valores que foram conquistados com o tempo e resiste às mudanças que podem ser prejudiciais. Para Fernandes, a prudência é essencial na política, e o conservadorismo deve ser pragmático e realista.

O pensamento de Fernandes está alinhado com a filosofia de Michael Oakeshott, que, em On Being Conservative, argumenta que o conservadorismo é, acima de tudo, uma disposição prática. Oakeshott descreve o conservador como alguém que não se opõe à mudança em si, mas que age com cautela e prudência, temendo os riscos inerentes a mudanças abruptas. Fernandes, ao afirmar que o conservadorismo deve ser uma resposta pragmática à realidade, reflete essa postura conservadora clássica, na qual a mudança é aceitável, mas somente quando se pode provar que ela trará benefícios reais.

Marco Feliciano, deputado que foi o primeiro evangélico a presidir a comissão de direitos humanos na Câmara Federal, define o conservadorismo como uma filosofia de vida que coloca a família no centro da sociedade. Para ele, a moral judaico-cristã é indispensável para manter a ordem social e a defesa da liberdade religiosa é um pilar fundamental de sua visão política.

Essa ênfase na tradição familiar reflete a visão de Russell Kirk, um dos principais expoentes do conservadorismo americano, que via a família como a base da civilização ocidental. Kirk defendia que o conservadorismo valoriza a ordem e a continuidade das instituições, especialmente a família, que é a primeira célula da sociedade. Feliciano compartilha essa visão, enfatizando que a família tradicional deve ser protegida contra as influências externas que possam desestabilizá-la.

Além disso, Feliciano defende a liberdade religiosa como uma proteção contra a "cristofobia" e contra os excessos do secularismo. Esse ponto também ressoa com as ideias de Burke, que acreditava que a religião, mais do que uma prática pessoal, deveria ser um fundamento essencial para a preservação da ordem social. A liberdade religiosa, para ambos, é vista não apenas como um direito individual, mas como uma garantia de que a moralidade judaico-cristã possa continuar a moldar a sociedade.

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Sóstenes Cavalcante, atual segundo vice-presidente da Câmara dos Deputados e líder histórico da bancada evangélica, coloca a vida e a família no centro de sua visão conservadora. Ele defende a proteção da vida desde a concepção e acredita que o conservadorismo deve se estender à preservação do meio ambiente como uma extensão dessa defesa da vida.

A visão de Cavalcante encontra paralelos nas ideias de Burke sobre a ordem natural. Para Burke, a sociedade é como um organismo vivo, que deve ser preservado e cuidado, incluindo os aspectos naturais e espirituais da vida. Burke também se opunha a qualquer ruptura abrupta com as tradições que sustentavam a sociedade. Assim, a defesa de Cavalcante pela preservação do meio ambiente e da vida está diretamente conectada a essa visão conservadora mais ampla de cuidado com a criação, vista como um dever moral.

Cavalcante também compartilha com outros conservadores a ênfase na família como base da ordem social. Para ele, a família tradicional é uma instituição que deve ser protegida contra forças desagregadoras, como drogas e jogos de azar, algo que Burke e Kirk também teriam defendido como ameaças à continuidade da civilização ocidental.

Magno Malta, senador de segundo mandato e ex-deputado, é enfático ao afirmar que a preservação da vida e da família tradicional são os alicerces do conservadorismo. Para ele, a família é a primeira instituição da sociedade e deve ser defendida contra ideologias progressistas que buscam redefinir o conceito de família.

A concepção de Malta sobre o direito natural está em sintonia com a filosofia política de Burke, que criticava a ideia de um universalismo iluminista desvinculado das tradições e do contexto cultural. Burke defendia que o direito natural deve ser entendido no contexto histórico e cultural de cada sociedade, e que a preservação das instituições, como a família, é fundamental para manter a ordem social.

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Além disso, Malta considera que a defesa da vida desde a concepção é um princípio inegociável de sua visão conservadora, refletindo a ideia de que certos direitos são naturais e inalienáveis. Para Burke, o direito à vida e à propriedade são princípios essenciais que derivam de uma ordem natural que deve ser preservada, não apenas em termos de leis, mas como parte de um pacto social entre gerações.

Damares Alves, ex-ministra e atual senadora, propõe o que ela chama de "novo conservadorismo". Ela defende a proteção da família e da infância, mas reconhece a necessidade de adaptar o conservadorismo às mudanças sociais, a exemplo de novas configurações familiares, no que se inclui como exemplo por ser divorciada e mãe adotiva. Alves sugere que o conservadorismo não deve apenas resistir às mudanças, mas também oferecer soluções propositivas que fortaleçam as instituições fundamentais da sociedade.

A visão de Damares Alves reflete o conceito de reforma defendido por Burke. Para ele, a reforma era necessária em algumas situações, mas ela deveria ocorrer de forma cuidadosa, respeitando as tradições e a ordem estabelecida, ao contrário das revoluções que promovem mudanças abruptas e radicais. A proposta de Damares de um conservadorismo que se adapta às mudanças, sem abandonar seus valores centrais, se alinha com a ideia burkeana de que a sociedade deve ser reformada, mas com respeito às suas raízes e à continuidade histórica.

Outro ponto recorrente entre os parlamentares entrevistados foi a defesa do liberalismo econômico, que busca reduzir a intervenção estatal e promover a liberdade de mercado. Marco Feliciano afirma que o conservadorismo pode ser tanto social quanto econômico, defendendo que a prosperidade de um país depende da liberdade de empreender. Damares Alves também reforça essa ideia, destacando a importância de uma economia liberal como parte central do conservadorismo político.

Essa visão encontra respaldo em pensadores como Roger Scruton, que argumenta que o liberalismo econômico só pode florescer em uma sociedade que valoriza as tradições e costumes conservadores. Scruton defende que a liberdade deve ser limitada de modo a impedir abusos e preservar a estabilidade social.

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A partir das entrevistas, é possível identificar temas centrais que definem o conservadorismo político evangélico: a defesa da vida, da família, da fé e da liberdade econômica. Esses temas são derivados, antes de tudo, de uma cosmovisão cristã que vê na moralidade judaico-cristã o alicerce para a estabilidade social. Ainda que o movimento seja impactado por correntes conservadoras internacionais, especialmente de índole teológica, ele possui características próprias, como, por exemplo, um requinte teórico em desenvolvimento e uma postura proativa de seus defensores, e não meramente reativa ao progressismo que combate os pilares do Ocidente, especialmente o cristianismo.

É possível afirmar que o conservadorismo político evangélico no Brasil é um pensamento que emerge da cultura protestante nacional, direcionado à preservação das instituições da civilização ocidental, com ênfase na moralidade bíblica e na promoção dos direitos naturais. Embora resistente ao que se mostrou funcionante e benéfico, ele se adapta às realidades sociais contemporâneas, propondo soluções que fortalecem as instituições fundamentais da sociedade.

Zizi Martins é procuradora do estado da Bahia, pós-doutora em Política, Comportamento e Mídia, doutora em Educação, graduada, especialista e mestre em Direito, com master em Gestão Pública.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]