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É imperativo moral e ético para a medicina expandir os horizontes e tentar beneficiar o maior número de pacientes com um tratamento comprovadamente eficaz
É imperativo moral e ético para a medicina expandir os horizontes e tentar beneficiar o maior número de pacientes com um tratamento comprovadamente eficaz| Foto: Pixabay

O transplante de órgãos como atividade médica teve seu início mais sustentado na década de 60 e se mostrou plausível durante toda a década de 70. Com o advento da década de 80 e o surgimento da ciclosporina como medicamento eficaz para o controle do processo de rejeição dos órgãos transplantados, estabeleceu-se de forma inequívoca a eficácia do tratamento. Naquela época, critérios para diagnóstico de morte encefálica não eram padronizados, as doações eram exíguas e geralmente realizadas no local da realização do transplante.

A evolução da atividade transplantadora, o desenvolvimento das soluções de preservação dos órgãos e a padronização do diagnóstico da morte encefálica resultaram em um crescimento expressivo das indicações e do número de transplantes realizados mundialmente. Esse sucesso resultou em um aumento da demanda por órgãos para transplantes. Deixando de ter um caráter experimental, cada vez mais pacientes viram no transplante uma esperança de melhor expectativa de vida, maior qualidade de vida e com redução de custos para os sistemas de saúde.

Em seu início, pessoas jovens e sem comorbidades eram os únicos doadores utilizados, os assim conhecidos “doadores ideais”. Porém, em um curto período a medicina transplantadora se viu impelida a tentar expandir os horizontes, surgindo o conceito da expansão de critérios para a utilização dos órgãos, ou seja, os “doadores de critérios expandidos”. Em sua essência, doadores de critérios expandidos são doadores que, por algum motivo – idade, doenças associadas, presença de infecções ou outras situações –, fogem da definição de doador ideal, mas que mesmo assim não são desqualificados como potenciais doadores.

Nas mais variadas modalidades de transplante, seja no coração, fígado, pâncreas, pulmão e rins, a evolução da técnica cirúrgica, de cuidados de terapia intensiva, controle de rejeição e adequada seleção de receptores levaram o risco do procedimento per si a se mostrar inferior ao risco de manter o paciente em lista de espera.

O que é preciso ressaltar é que receber um órgão de doador de critério expandido não significa receber um órgão ruim. A cadeia decisória da utilização de um órgão de doador de critério expandido envolve uma avaliação do binômio receptor-doador. Ou seja, características do doador precisam ser “casadas” com características do receptor. Em uma determinada oferta, um órgão de doador de critério expandido pode não ser adequado para um receptor específico, mas em uma próxima doação esse receptor pode ser perfeitamente contemplado.

Vejamos algumas situações de órgãos de critérios expandidos: um receptor de transplante de fígado portador do vírus da hepatite C pode receber um órgão de um doador com o vírus da hepatite C; um receptor de pulmão pode receber órgão com alterações na broncoscopia ou até trauma de tórax; um receptor de rim com imunidade contra o vírus da hepatite B pode receber um órgão de um doador com essa doença; um receptor de 70 anos de idade pode receber um rim de um doador de 75 anos, ao passo que um receptor de 20 anos provavelmente não seja um receptor adequado para um órgão dessa idade; rins de um doador com baixa taxa de filtração glomerular, com qualidade duvidosa para serem transplantados individualmente, podem ser transplantados em conjunto no mesmo receptor; um paciente de baixo peso corporal pode receber metade de um fígado, cuja outra metade foi utilizada para um transplante de uma criança; receptores HIV positivo podem receber órgãos de doadores HIV positivos, não obstante essa possibilidade ainda não ser autorizada no Brasil; doadores com sorologias positivas para algumas doenças infecciosas podem doar até para receptores que nunca tiveram contato com essa doença; um coração pode ser doado após parada circulatória.

Enfim, as situações são múltiplas e não passíveis de um relato breve. Cumpre ressaltar que essas situações que configuram a utilização dos órgãos de critérios expandidos encontram amparo na própria legislação brasileira de transplantes, assim como nos guias de conduta europeu e norte-americano.

A mortalidade em lista de espera para um transplante é uma realidade. É imperativo moral e ético para a medicina expandir os horizontes e tentar beneficiar o maior número de pacientes com um tratamento comprovadamente eficaz. É induzido ao erro quem acha que aumentar o número de doações resolve o problema; isso apenas o mitiga. Essa é a justificativa para sempre almejar melhores índices de doação. A falta de órgãos é um problema estrutural da medicina, comprovado o fato de que quanto a maior disponibilidade, maior será a necessidade. Tão isso é verdade que a “fabricação” de órgãos por meio de engenharia genética ou a utilização de xenotransplantes (o uso de órgãos provindos de animais) estão logo aí na fronteira médica.

Seguindo nossa legislação, cabe ao Estado, através das ações das Centrais Estaduais de Transplante, identificar, diagnosticar e ofertar todos os órgãos disponíveis para transplante. A análise das características dos órgãos doados e da razoabilidade da utilização deles – por deveras complexa – cabe única e exclusivamente à equipe transplantadora, baseado no seu melhor julgamento e experiência. Após a distribuição e utilização dos órgãos, volta ao Estado a responsabilidade, em conjunto com as Câmaras Técnicas Estaduais de cada modalidade de transplante, de acompanhar a evolução dos pacientes transplantados, aperfeiçoando continuamente os rumos do sistema de transplante.

Cumpre ressaltar que, apesar de subordinado ao Sistema Nacional de Transplantes, cabe a cada estado da Federação organizar seu sistema de identificação, captação e distribuição dos órgãos, fato esse responsável pelas discrepâncias observadas nos índices de doação entre os estados brasileiros. Nesse sistema o estado do Paraná galgou destaque na última década.

*Fábio Silveira, médico, é cirurgião de transplantes do Instituto para Cuidado do Fígado e do Hospital do Rocio.

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