O neologismo “extrema-imprensa”, forjado nas redes sociais, trata de caracterizar a manipulação do jornalismo por ideólogos. Nada de mais. A língua é viva e presta-se a todas essas transformações. Tal como foi concebido, “extrema-imprensa” surge como caricatura do urgente papel que o jornalismo tem na sociedade. Trata-se da instrumentalização do bom jornalismo que, em vez de informar, pretende “fazer justiça” pela manipulação da narrativa dos fatos. Há outros neologismos possíveis como “extremo-teatro”, “extrema-pedagogia”, “extremo-cinema”, “extremo-blogueiro”, “extremo-cronismo esportivo” etc. O ponto comum entre essas posturas é a manipulação das narrativas, a fim de criar, a partir de uma caricatura, um espantalho a se destruir ou um herói a se defender. Ao que parece, a pandemia de coronavírus pariu uma nova palavra: a “extrema-ciência”.
Assim como suas coirmãs linguísticas, a “extrema-ciência” também falsifica a noção original, para “fazer justiça” contra os espantalhos criados pelo viés ideológico predominante nas redações, nas coxias e, agora, nos grupos de pesquisa. É preciso reafirmar que, assim como o bom jornalismo, a ciência nada tem a ver com isso. A “extrema-ciência” é uma corrupção da ciência, pois, em vez de ocupar-se com a verdade, procura ocultá-la ou distorcê-la, a fim de servir a interesses distintos. Essa é a razão pela qual atrizes, humoristas, jornalistas, professores e toda sorte de agnósticos e céticos, que até anteontem defendiam a inexistência da verdade, hoje bradam a plenos pulmões: “ciência, ciência, ciência”. O que mudou para relativistas e agnósticos clamarem pela verdade da ciência? A verdade voltou a existir?
A contradição se explica porque a “extrema-ciência” não presta serviço à verdade, mas submete-se absolutamente a interesses ideológicos. Os justiceiros da ciência pretendem descrever a crise atual como se um lado representasse a luz e a verdade, enquanto o outro encarna a ignorância e as trevas. Mas essa é apenas mais uma forma de desinformação.
Sobre esse modo de manipulação da opinião pública pela “extrema-ciência”, o britânico John C. Lennox, PhD em matemática e professor da Universidade de Oxford, cunhou uma ideia que bem pode iluminar o momento delicado pelo qual passa o mundo. O contexto do extrato é o da pseudodisputa entre ciência e teísmo, mas a questão pode ser aplicada ao debate sobre o lugar da ciência na vida das pessoas e das sociedades. Diz o matemático, no documentário Expelled: “Se temos dois cientistas distintos – e de fato, podemos ter muito mais em cada lado, como sabe – a afirmar coisas exatamente opostas, isso indica que o conflito não é entre a ciência e a crença em Deus. De outra forma, esperaríamos que todos os cientistas fossem ateus. Mas é um conflito entre duas visões do mundo. [A disputa] É entre cientistas, que têm duas visões diferentes sobre o mundo”.
Parece-me que essa análise do professor Lennox é precisa e expressa bastante bem o que ocorre, de forma restrita, na batalha sobre a aplicação da hidroxicloroquina aos afetados pelo vírus no Brasil, mas também trata do lugar da ciência na sociedade, numa perspectiva alargada. Com efeito, se há dois cientistas distintos (e há muito mais) a afirmar procedimentos exatamente opostos no tratamento da doença, claro está que a razão dessa disputa não está no fato de a ciência ter procedimentos incontestáveis sobre o assunto, mas que o centro do debate se encontra em outro lugar. A “extrema-ciência” trabalha para dar a impressão de que a comunidade científica é uníssona nos procedimentos, com o intuito claro de desacreditar o dissenso e para esconder que o fator decisivo da questão está oculto em ouro lugar. E o oculto, esse outro lugar que reúne o fundamental da querela, é, em última análise, a visão de mundo do cientista.
Visão de mundo (Weltanschauung, em alemão) é conceito conhecido na filosofia contemporânea (Franz Brentano, Martin Heidegger e o próprio Círculo de Viena, dentre outros, utilizam esse conceito) e consigna o conjunto de valores e pré-conceitos que constitui o horizonte epistemológico do ser humano. Um entendimento equivocado pode comparar visão de mundo com a soma das crenças que compõem a compreensão do indivíduo particular. Mas essa postura ainda é muito redutora. Não se trata apenas do resumo da perspectiva geral sobre a realidade que cada homem traz dentro de si. É mais que isso. É a condição de possibilidade para toda compreensão do mundo à sua volta. A Weltanschaunng indica para o rapazola que a piscadela da moça é um sinal de que o amor está à porta e não o reflexo automático de um cisco no globo ocular da menina. Ou que o pigarro na sala de estar é uma indicação para se mudar de assunto e não efeito de uma infecção em andamento. Veja o como clamor “ciência, ciência, ciência” é enganador, pois sem as condições para interpretação dos dados (a piscadela e a tosse são materialmente só isso: piscadela e tosse), o triplo brado é só propaganda e nada mais.
Com efeito, não é a ciência que determina o modo como o cientista interpreta os dados à sua volta, não é a ciência que constrói a visão de mundo do pesquisador, mas ocorre justamente o contrário: é a visão de mundo do cientista que orienta as possibilidades de interpretação dos dados coletados pelo experimento e pela observação. Afinal, os dados colhidos por instrumentos não são autointerpretáveis, não é? Eles necessitam de significado, demandam sentido, solicitam explicação e essas características não chegam ao pesquisador junto com os dados impressos pela máquina. Pelo contrário, o significado dos dados científicos é oferecido pelo gênio do pesquisador, pela riqueza interior do cientista, pelo horizonte criativo do estudioso: enfim, por sua visão de mundo (Weltanschaunng). Mas a “extrema-ciência” não reconhece tais refinamentos, pois não é legítima ciência, não está interessada na verdade. Ela necessita descrever o embate como se fosse uma batalha entre nós e eles, entre cientistas e obscurantistas, o que é um reducionismo frágil. A pergunta que resta fazer é: que visão de mundo move a “extrema-ciência”?
Robson de Oliveira é professor de Filosofia da PUC-RJ e diretor do CTSmart.
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