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Uma de minhas principais críticas ao Brasil sempre foi a de que vivemos uma inversão do Contrato Social, explicitamente descrito por Jean-Jacques Rousseau, que demonstra que as pessoas abrem mão de suas liberdades naturais para viver em sociedade em troca de um modelo social no qual o Estado existe para servir à população e garantir suas liberdades individuais.
Uma das principais causas de o Brasil continuar a ser um país disfuncional, onde há riqueza e pouca distribuição, é a limitadíssima eficiência do Estado, seja ele para cobrar impostos, aplicar recursos, julgar processos ou definir regras de importação, e assim vai um sucessivo conjunto de absurdos que geram a célebre frase “Só no Brasil!”.
Quem enxerga tudo isso no exterior encontra um país disfuncional, onde o risco fica cada vez mais evidente tanto para estrangeiros quanto para os brasileiros que decidiram ir embora
Quando comparamos números simples, mostramos o quanto o Brasil é disfuncional. Em média, utilizamos 1.501 horas de trabalho ao ano para calcular os impostos que serão pagos, enquanto a média da OCDE, clube de países de quem decidimos nos afastar, são 164 horas. Quando analisamos o nosso gasto com o judiciário, gastamos 1,6% do PIB, sendo o mais caro percentual do mundo. Em países emergentes, a média é 0,5%; nos desenvolvidos, 0,25%. Até mesmo o novíssimo IVA brasileiro, que ainda não nasceu, será o maior do mundo com 27,97%, ultrapassando os 27% da Hungria devido ao inúmero conjunto de exceções.
A colocação e a pergunta que ficam é: estamos gastando mais e pagando mais, então por que nossos serviços estão cada vez piores? Mas estão mesmo? Não estamos evoluindo? É verdade que hoje temos bem menos analfabetos do que tínhamos em 1970, mas esse tipo de comparação a meu ver é esdrúxula e coloca o Brasil e os brasileiros como cheerleaders da mediocridade.
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O real esclarecimento de que precisamos é: por que ficamos para trás em relação à Coreia do Sul, à Índia e à China em 40 anos se, na década de 1970, éramos nações bem similares? O que fizemos de errado e tão comprometedor? Crises tivemos várias, e os asiáticos também. Ditaduras ocorreram ao redor do planeta, mas o principal é que o Contrato Social dessas nações foi ajustado e serve ao povo, mesmo que de maneira imperfeita, enquanto no Brasil o povo serve ao Estado, e, no andar da carruagem, isso poderá ser fatal.
Nos últimos meses assistimos, tanto do Executivo quanto do Legislativo e do Judiciário, a três ações que a meu ver simbolizam o extremo do Estado, invertendo o Contrato Social e comprometendo não apenas a credibilidade como a visão internacional do Brasil, mas também apresentando uma nação na qual as liberdades individuais são relativas, e os agentes do Estado são tão poderosos que vão minando direitos basilares dos indivíduos.
O primeiro caso é do Judiciário, não vou me ater aqui aos preceitos jurídicos, se está certo ou errado, vou focar no que a comunidade internacional vê a partir de suas atitudes. Assistimos ao bloqueio de uma rede social com mais de 20 milhões de usuários, uma decisão de bloquear aplicativos de VPN e, na mesma decisão, a possibilidade de multar todo e qualquer cidadão brasileiro que nada tem a ver com processos judiciais no STF. A visão internacional que passamos é de que no Brasil se censura a mídia para resolver um problema de uma empresa, e estamos equiparados à China, à Rússia e à Coreia do Norte pela incapacidade de tratar com os dilemas da modernidade.
Ao mesmo tempo, foi autorizado retirar recursos da conta corrente de uma outra empresa do mesmo grupo empresarial (Starlink) para pagar multas da primeira (X/Twitter), abrindo assim uma nova “tese” para juízes no Brasil inteiro tomarem a mesma atitude, esquecendo-se de princípios básicos de personalidade jurídica. Realmente alguém acredita que isso não vai entrar nos Risk Reports dos investidores ao redor do planeta? Isso gera mais “Custo Brasil” causado por um judiciário disfuncional.
O Legislativo aprovou no mesmo mês uma lei autorizando o Executivo a confiscar recursos de contas de pessoas físicas no Brasil caso elas não se manifestem em um determinado prazo, como medida de compensação, pela desoneração da folha de pagamento. Quando o argumento de fechar as contas públicas se torna razão para expropriar recursos de particulares baseado no “se não falar nada, é nosso!”, isso torna o país uma nação temerária para investimentos de longo prazo, pois não se sabe o que poderá vir depois em nome do “fechar as contas públicas”.
Na última semana, o Executivo começou a debater a ideia de que poderá ser possível confiscar terras onde ocorreram queimadas. Por mais nobre que isso possa parecer em nome da defesa do meio ambiente, seria necessário provar que o dono da terra foi o responsável pela queimada, ou que de fato existem elementos criminosos para tal. Ainda assim, abre-se um precedente para que o confisco de terras por parte do governo se torne corriqueiro contra qualquer atividade que se julgue “desfavorável”, e ainda assim não resolverá o principal problema que são as queimadas, que devem ser combatidas com equipamentos, estratégia de inteligência, pessoal e tecnologia.
Todos esses exemplos são lamentáveis e têm pontos em comum. Eles mostram as diversas faces da falência do Contrato Social brasileiro, em que o Estado atualmente constituído não consegue julgar, proteger, arrecadar e pagar de maneira minimamente ordeira e em prol da melhoria da qualidade de vida do indivíduo. Em consequência à sua própria incompetência, ele exacerba seus limites e avança sobre os direitos individuais os quais deveria proteger, dilapidando-os pouco a pouco, tornando a vida do brasileiro mais esgotada e, por tabela, revoltando-o ainda mais contra as atuais lideranças dos Três Poderes.
Quem enxerga tudo isso no exterior encontra um país disfuncional, onde o risco fica cada vez mais evidente tanto para estrangeiros quanto para os brasileiros que decidiram ir embora. Dessa maneira, fica muito claro que, com essas bases do Contrato Social sendo organizadas dessa forma, o real desenvolvimento econômico do Brasil ficará adiado novamente por mais algumas décadas.
Igor Lucena é economista, doutor em Relações Internacionais na Universidade de Lisboa e CEO da Amero Consulting. Membro da Chatham House – The Royal Institute of International Affairs e da Associação Portuguesa de Ciência Política.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos