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A família como instituição cultural
| Foto: Jessica Rockowitz/Unsplash

Quando assisti ao espetáculo Gostava Mais dos Pais, com Bruno Mazzeo e Lúcio Mauro Filho, adveio-me uma perspectiva para perceber a família não apenas como base da sociedade e ambiente (idealizado) de afetos, mas como instituição cultural. Uma forte evidência jurídica disso consta no artigo 26, item 3, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, segundo o qual, “aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos”, do que se extrai a ideia de herança, não somente a patrimonial (que é incerta, considerando que nem sempre há bens a partilhar), mas sobremodo cultural, praticamente compulsória, pois todas as pessoas que convivem num seio familiar aprendem a mesma língua, os mesmos costumes, os mesmos valores ou, numa expressão-síntese, a mesma cultura.

É bem provável que esse poder cultural da família seja o último aspecto remanescente daquilo que Aristóteles chamava de “poder doméstico”, tão amplo que permitia até mesmo o sacrifício da vida dos filhos, em nome de valores então considerados maiores, como fez o mítico Agamêmnon em relação a Ifigênia, para se desculpar com a deusa Ártemis; ou como poderia ter feito o bíblico Abraão com Isaque, não fosse a intervenção cinematográfica do anjo Gabriel que, na última hora, revelou ser o sacrifício demandado apenas um teste de fidelidade feito por Jeová.

A família perdeu poder em todos os âmbitos, sendo que um deles, embora também abalado, persiste perceptível, que é o poder cultural

Com o surgimento dos clãs, das tribos, das cidades-Estado e, finalmente, do próprio Estado, os poderes da família foram se diluindo, uma vez que no seu âmbito reconheceram-se, paulatinamente, direitos individuais específicos aos seus componentes, como os relativos à mulher, às crianças e adolescentes e à pessoa idosa.

No âmbito da Constituição Brasileira de 1988, a situação da família é bem ambígua, dado que a ela são atribuídos mais deveres que direitos, estando entre os primeiros o da educação dos filhos, o do amparo aos seus idosos, deficientes e presos. Dentre as prerrogativas, a proteção às suas pequenas propriedades, o amparo assistencial e a possibilidade de defesa contra as atividades comunicacionais que contrariem suas convicções e valores, desde que sejam considerados legítimos.

Como facilmente se vê, a família perdeu poder em todos os âmbitos, sendo que um deles, embora também abalado, persiste perceptível, que é o poder cultural, porém, com curiosas nuances quando sai dos seus aspectos antropológicos e genéricos e se vincula com a tentativa de entrega de um espólio cultural personalíssimo, como é o caso das técnicas e do talento artístico, possuidores de facetas distintas, a depender de uma perspectiva de indústria cultural ou de cultura popular, conforme será visto adiante.

Aqui se retoma a referência ao espetáculo apresentado pelos filhos de Chico Anysio e Lúcio Mauro, cujo título (mencionado no primeiro parágrafo) é revelador da dificuldade enfrentada por dois homens de talento, já maduros, e que, mesmo após a contagem de uma quantidade significativa dos anos, lutam para ver reconhecidas as próprias qualidades artísticas, obrigando-os a fazer piada sobre suas filiações, como forma de enfrentar a questão.

Na seara da indústria cultural, onde transitam os dois artistas, que se rege preponderantemente por critérios mecânicos e individualistas, pode-se perceber a regra de que o reconhecimento do talento dos filhos é inversamente proporcional ao dos pais, como se fossem herdeiros culturais de segunda categoria e ferrenhos concorrentes dos genitores.

No âmbito da cultura popular, contrariamente, por ser mais orgânica e, portanto, coletivista, os filhos que seguem a atividade dos pais não são vistos como pessoas que com eles disputam, mas como aqueles que merecem o reconhecimento de levar a herança cultural de seus ancestrais às novas gerações, ou seja, agregam ao próprio fazer cultural aquele recebido dos pais, na forma de ensinamentos.

O drama de Bruno e Lucinho, curiosamente externado na forma de comédia, resulta do estúpido e preconceituoso fato de que seus pais trabalharam para empresas que exploram economicamente a atividade artística; se tivessem permanecido em circos, bares e praças, privando milhões de pessoas de suas marcantes atuações, talvez o espetáculo que apresentaram fosse designado de “Puxaram aos Pais”.

Humberto Cunha Filho, professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), presidente de honra do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), é autor, dentre outros, da obra “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP).

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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