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Família Ulma: o casal de sete filhos elevado aos altares que foi martirizado por nazistas

(Foto: Divulgação/Vatican News)

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A história da Segunda Guerra Mundial está repleta de eventos cruéis que mostram a escalada inimaginável da degradação moral humana, da bestialidade, da disposição para fazer o mal e infligir sofrimento. Por outro lado, surge o polo oposto, onde se manifestam atitudes de amor heroico ao próximo, sacrifício e oferta voluntária. Pode-se argumentar que a polarização das atitudes humanas sempre fez parte da natureza da história, mas é impossível não notar que no território da Polônia ocupada o contraste entre o mal quase puro e o bem era mais evidente do que em qualquer outro lugar. Não houve país que tenha sobrevivido a uma ocupação igualmente cruel e mortal. Ao comparar a situação econômica, as leis e a prática do domínio alemão na Polônia e em países como França, Holanda, Bélgica, Dinamarca e Estados Bálticos, um investigador de história tem a impressão de que está lidando com realidades muito diferentes. Poderia dizer que, fora da Polônia, “dava pra se viver” de forma moderada, colaborando com o ocupante. A menos que a pessoa fosse judia – esse fato, por si só, poderia equivaler a uma sentença de morte, especialmente depois que a decisão sobre a "Solução Final" foi tomada na Conferência de Wansee, no início de 1942. A lista de voluntários para o exército de Hitler incluía 50.000 holandeses, 40.000 belgas, 25.000 ucranianos, 20.000 franceses, 11.000 lituanos, 6.000 noruegueses, mas não havia nessa lista nenhum polonês.

A Polônia também se distinguiu pelo fato de apenas no seu território existir uma lei que previa pena de morte para qualquer ajuda prestada aos judeus. Noutros países, poderia ser aplicado uma multa. Na Polônia, a execução imediata sem sentença judicial, muitas vezes junto com a família e os vizinhos, com base na responsabilidade coletiva.

Um cartaz afixado em 1941 dizia: "Os judeus que deixarem o distrito que lhes foi designado sem autorização estão sujeitos à pena de morte. Estão sujeitas à mesma punição as pessoas que conscientemente derem a esses judeus um esconderijo. Os instigadores e ajudantes  estão sujeitos à mesma punição que o autor do crime. A tentativa de ato será punida como ato consumado".

É impossível não notar que no território da Polônia ocupada o contraste entre o mal quase puro e o bem era mais evidente do que em qualquer outro lugar

Foi sob essa desumana ocupação alemã que a família Ulma viveu no vilarejo de Markowa, no sudeste da Polônia. No verão de 1942, os alemães iniciaram uma campanha para liquidar os guetos judeus. Aqueles que ali se encontravam eram levados para campos de concentração e assassinados. Em Markowa, a maioria dos judeus decidiu permanecer no local e buscar ajuda de famílias polonesas. Os alemães estavam cientes disso e, em dezembro de 1942, organizaram uma "ronda", ou seja, uma busca sistemática em vilarejos e campos. De acordo com as descobertas dos historiadores, 25 dos cerca de 55 judeus escondidos em Markowa foram encontrados e mortos nessa ocasião. Józef e Wiktoria Ulma não apenas ouviram os tiros, mas também presenciaram a execução. Os judeus sobreviventes viviam em abrigos (Józef ajudou a construir um deles) ou nos campos. As pessoas tinham medo da crueldade dos alemães, mas mesmo assim, muitas ajudavam os que estavam escondidos, por exemplo, deixando comida em um local combinado e em algum determinado horário. Mas também havia aqueles que decidiram acolher e esconder famílias judias sob seu teto. Os Ulma estavam entre esses.

Saul Goldman e seus quatro filhos, bem como a filha casada de Chaim e Esther Goldman e um filho, refugiaram-se no sótão de sua pequena casa. Perto dali, na casa de outra família polonesa, Antoni e Doroty Szylar, outra família judia chamada Weltz se escondeu por 19 meses. Eles sobreviveram à guerra e, após seu término, partiram para Nova York. Antes disso, porém, na noite de 23 para24 de março de 1944, eles ouviram os tiros que mataram os seus vizinhos: Józef e Wiktoria Ulma, seus sete filhos e todos os judeus que eles estavam abrigando. Apesar do ataque de medo, a família Szylar decidiu continuar escondendo a família Weltz. Graças a essas pessoas, 21 judeus sobreviveram à guerra em Markowa.

A causa imediata da exposição da família Ulma foi provavelmente o contato imprudente de alguém da família Goldman com um Policial Azul de sobrenome Leś (a Polícia Azul era uma formação policial baseada na polícia polonesa de antes da guerra), que era um conhecido deles e que havia se apropriado indevidamente de seus bens, prometendo escondê-los, o que, obviamente, não fez. Provavelmente, exigiram a devolução de parte do dinheiro roubado. A guerra estava chegando ao fim, a frente avançava para o leste e Leś, temendo a responsabilidade após a derrota alemã, decidiu liquidar as testemunhas de seu crime. Ele informou aos alemães, que, sob o comando de Eilert Dieken, executaram o crime. Primeiro, os irmãos Goldman e sua irmã foram mortos no sótão. Mais tarde, os judeus permaneceram no pátio. Em seguida, Jósef e Wiktoria foram levados para frente do chalé e fuzilados. Em meio aos gritos e choros das crianças, que chamavam por seus pais já falecidos, houve uma breve discussão sobre o que fazer com as seis crianças.  Decidiu-se que elas também deveriam ser fuziladas.

Quando, mais tarde, questionado pelo chefe do lugarejo, por que as crianças foram mortas, Dieken teria respondido "para que o grupo não se incomodasse com elas". É importante observar que Dieken nunca foi punido por suas ações. Pelo contrário, após a guerra, ele foi submetido a procedimentos de desnazificação e trabalhou como policial em sua cidade natal, Esens (Alemanha Ocidental).

Noutros países, poderia ser aplicado uma multa. Na Polônia, a execução imediata sem sentença judicial

Quem foram Jósef e Wictoria? Certamente um casal amoroso. Józef era 12 anos mais velho que Wiktoria e, juntos,  administravam uma fazenda e criavam seus filhos.

Numa das fotos de família que foram preservadas Wictoria pode ser vista ensinando os seus filhos a rezar. A primeira Stanisława, nasceu em 1936, seguido de Barbara e Władysław. Já durante a guerra, nasceram Franciszek, Antoni e Marysia. O último filho começou a nascer na trágica noite em que toda a família morreu.

Sabe-se mais sobre Józef. Ele era um camponês com horizontes intelectuais excepcionais. Ele se interessava por fotografia, horticultura, novos métodos de cultivo de plantas, especialmente vegetais, lia muito e construiu diversas máquinas agrícolas de sua própria invenção. Ele era gentil e prestativo e, mais de uma vez, ajudou outros agricultores sem querer receber por isso.

Não há dúvida de que os Ulma estavam cientes do risco que corriam ao ajudar os judeus. Decidiram viver em constante perigo, confiando na Providência de Deus. A Providência os conduziu pelo caminho do martírio. A Igreja reconhece que esse foi um caminho direto para o céu para eles e para os seus filhos, incluindo a criança ainda não nascida e não batizada. Pode-se dizer que seus filhos se juntaram à família dos jovens santos mortos por Herodes, por quem Raquel chorou.

Entre as relíquias dos Ulma, um exemplar da Bíblia Sagrada com destaques vermelhos é particularmente impressionante. Uma delas se refere à parábola do Bom Samaritano misericordioso. A palavra "sim" foi acrescentada ao lado. Este "sim" parece explicar a história de seu heroísmo e também a decisão de reconhecê-los como mártires da fé.

Ładysław Piasecki é polonês, teólogo, economista e tem doutorado em Ciências Políticas.

Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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