Trabalhar em prol da restrição ao uso de smartphones por crianças em escolas, agora lei, colocou-me em contato com uma das grandes preocupações das famílias: a doutrinação nas escolas. Trata-se de um temor tão grande que, apesar dos notórios benefícios de retirar os celulares das salas de aula, muita gente ficou contra a medida por considerar a possibilidade de os alunos filmarem os professores como uma das únicas defesas efetivas contra professores doutrinadores, da qual muitas crianças dependeriam. Mas será mesmo que professores doutrinadores são a grande causa da oposição de valores entre as famílias e seus filhos?
Há muitas questões misturadas aí. Em primeiro lugar, é evidente que a escola precisa ser um espaço de apoio ao desenvolvimento da criança, cujos primeiros responsáveis sempre serão seus familiares. Caso haja um conflito sério entre os valores apresentados às crianças por escola e família, elas serão as grandes prejudicadas. Os pequenos precisam de referências claras para desenvolver-se, o que não significa colocá-los numa “bolha”.
É urgente conscientizarmos pais, mães e responsáveis de que os grandes inimigos da educação e dos valores frequentam suas casas, estão em seus sofás e até mesmo na intimidade dos quartos
Em sintonia com a família, a escola pode, sim, ser o lugar de ampliar os horizontes e ensinar sobre visões de mundo diferentes, sem com isso pretender fazer proselitismo com o aluno, contra seus responsáveis. Em resumo, o esperado é haver uma saudável parceria entre famílias e professores, que devem apoiar-se mutuamente na fundamental tarefa de garantir o desenvolvimento integral de todas as crianças.
Por outro lado, conflitos geracionais, em que jovens rompem com valores de seus pais, são uma constante na história. A clássica obra de Turgueniev, Pais e Filhos, dá contornos dramáticos a esta tensão universal. Apesar de ambientada na Rússia rural de meados do séc. XIX, poderia muito bem representar relações familiares de uma família brasileira de uma grande metrópole do séc. XXI – os clássicos, afinal, têm esse apelo atemporal. Para o bem e para o mal, a cada geração, certas percepções de mundo são desafiadas pelos mais jovens e dão lugar a outras, que por sua vez haverão de ser contestadas pelas gerações subsequentes. Embora acredite que toda família tem a obrigação de comunicar sólidos princípios de vida a seus filhos, não me parece possível impedir esse movimento. O que os mais jovens farão com o que lhes foi ensinado, afinal, está no âmbito irrevogável de sua liberdade.
Entendo a frustração de muitas famílias quando uma criança passa a contestar valores recebidos no lar. Não tenho dúvidas de que, em muitos casos, alguns professores são os responsáveis por este conflito, ao adotar uma postura proselitista em sala de aula. Dia desses vi um vídeo de um influenciador comunista (de verdade, com foto de Mao Tsé Tung ao fundo), professor de ensino médio, confessando usar suas aulas para fazer propaganda de sua ideologia. Naturalmente, isso confirma a preocupação de muitas famílias. Porém, o mais surpreendente da história é o que o mesmo influenciador admite instantes depois: apesar de seus esforços, os alunos não aceitam sua defesa do comunismo. Pelo contrário, sempre rebatem os argumentos e declaram aderir a uma visão de mundo cristã, incompatível com o marxismo. O professor então concluía, pesaroso, a existência de uma geração de jovens sendo doutrinadas por suas famílias e líderes religiosos, contra quem ele se considera impotente.
Ou seja: embora haja desafios na transmissão de valores, uma família presente, com princípios sólidos e vida coerente, continua sendo um poderoso instrumento de transmissão de convicções. Não me parece que a grande oposição a isso venha das escolas: o verdadeiro inimigo convive diariamente com cada família, na intimidade de seu lar. É através da internet que crianças e jovens entram em contato com ideias e atitudes radicalmente contrárias às aprendidas em seus lares.
Sem qualquer restrição, frequentemente deparam-se com conteúdo inquestionavelmente nocivo, da pornografia à apologia de ideais atrozes. Recentemente, uma reportagem americana demonstrou que um jovem de 13 anos com um perfil recém-criado no Instagram leva cerca de 20 minutos para ser apresentado a conteúdo adulto, sem que tenha pesquisado pelo assunto.
Como pano de fundo, o acesso à internet por crianças não pára de crescer: 71% das crianças brasileiras entre 3 e 5 anos usam internet; entre 6 e 8 anos, essa proporção chega a 80%, segundo dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, publicados em 2025. Infelizmente, a maior parte das famílias não têm conhecimento sobre os imensos riscos a que seus filhos estão expostos na internet, sobretudo quando passam longas horas diárias navegando – em média, praticamente 4 horas por dia. Como esse uso é não monitorado, a exposição de crianças a conteúdos impróprios aumenta, ao passo que a idade média desses eventos só diminui.
Hoje, portanto, quem compete com a família na formação do caráter das crianças, muito mais do que as escolas, é a internet. É urgente conscientizarmos pais, mães e responsáveis de que os grandes inimigos da educação e dos valores frequentam suas casas, estão em seus sofás e até mesmo na intimidade dos quartos. Se há um bicho papão com que se preocupar, ele é virtual e chega ao íntimo da consciência de seus filhos pela internet que você mesmo lhes provê, pelos smartphones moderníssimos que lhes dá de presente, em detrimento dos devidos limites, atenção e bom exemplo.
Rodolfo Barreto Canonico é especialista em políticas públicas para famílias e diretor da ONG Family Talks.