Sacha Guitry, o teatrólogo e escritor francês que tinha verdadeira paixão por Mônaco e pelo Cassino de Monte Carlo, conta em seu livro "Memórias de um Trapaceiro" que, por conta dessa paixão, os amigos insistiam para que escrevesse uma opereta a respeito do principado. Guitry achava essa uma tarefa impossível, "pois Mônaco já era uma opereta!". Parafraseando Guitry, se algum escritor resolver escrever uma farsa ambientada no Brasil, não conseguirá pois o que não está faltando na praça é um estoque inesgotável de farsa com toques de trapaça e, infelizmente, momentos de tragédia.
Existe algo mais farsesco que a maneira com que os membros do Senado Federal fingem reagir às ameaças veladas de Renan Calheiros enquanto assistem à destruição da instituição nas mãos desse inacreditável prestidigitador que deu dimensão inédita ao caradurismo e à desfaçatez com seus recibos falsos, desculpas esfarrapadas e ligações familiares e radiofônicas? Ou a maneira como vem sendo tratado o acidente da TAM? Que imaginavam os membros da CPI quando decidiram perguntar a um representante do fabricante do avião se foi o seu produto que causou a tragédia de Congonhas? Por que não lhe pediram para explicar detalhadamente a razão pela qual a empresa aceita que o seu avião voe até dez dias com um componente de segurança desativado? Por que não lhe perguntaram, concretamente, se ele, como engenheiro aeronáutico e especialista em segurança aérea, recomendaria que o aparelho fosse utilizado em uma pista escorregadia e sabidamente curta em um dia de chuva? Há algo mais desonesto e trapaceiro do que tentar apressadamente desonerar o fabricante da aeronave, a empresa gestora do aeroporto e a empresa aérea de qualquer culpa e jogar todo o peso da responsabilidade sobre os dois comandantes, aos quais está se atribuindo um erro primário que pilotos com dezenas de milhares de horas de vôo dificilmente cometeriam?
O comandante da Aeronáutica contribuiu para a farsa ao declarar que o avião do presidente da República não voa com o tal dispositivo travado por uma questão de segurança. Ou seja, explicitou a existência de uma gradação inédita entre a preocupação com a segurança do primeiro mandatário do país e a dos passageiros comuns. Enquanto Gustavo Fruet lucidamente colocou essa questão na CPI, a deputada Luciana Genro estava aparentemente mais preocupada com a incorreção política da linguagem do brigadeiro, a quem censurou por ter se referido aos controladores como "elementos", denominação desairosa, segundo ela, e reservada a malfeitores. É até compreensível que a deputada que não deve ter feito serviço militar desconheça que para os militares, as pessoas serão sempre elementos, sem qualquer sentido pejorativo, assim como os veículos são chamados de viaturas e as apostilas, de polígrafos. Mas vamos e venhamos, com tanta dor envolvida no caso, a deputada vai se preocupar com a linguagem do brigadeiro? Que, aliás, talvez ela prefira descrever como um nipodescendente para ficar no politicamente correto.
Existe algo mais farsesco do que as explicações do governo brasileiro para a deportação a jato dos dois boxeadores cubanos? Ou alguém duvidava que, quando chegassem a Cuba, um Estado totalitário, seriam internados em uma "casa especial do governo", expostos à execração pública como traidores e incluídos no grupo dos párias sociais que são impedidos de ganhar a vida em um país em que o único empregador é o governo? Onde estavam os loquazes defensores brasileiros dos direitos humanos ao ver os dois rapazes serem repatriados sem ter a oportunidade sequer de se encontrar a sós com alguém de respeitabilidade que pudesse verificar, sem pressões, se o desejo deles de voltar ao seu país era verdadeiro ou não? Será que o ministro da Justiça, homem culto, desconhece que nos países totalitários sempre que um artista ou um esportista vai ao exterior, sua família fica no país como garantia de seu retorno? Será que o governo brasileiro virou uma versão moderna da Velhinha de Taubaté, personagem do Luiz Fernando Verissimo, que acreditava em tudo que lhe diziam? Ou simplesmente virou o rosto para o outro lado, refugiando-se em confortável pusilanimidade? Farsa pura.
Karl Marx, numa frase manjadíssima, dizia que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. No Brasil, são as farsas e trapaças repetidas impunemente que acabam ocasionando as tragédias.
PS: A inteligência paranaense perdeu Luiz Roberto Soares precoce e inesperadamente. Luiz Roberto era uma pessoa culta na acepção mais adequada do termo, uma inteligência viva enriquecida por uma leitura vasta, com a vantagem de que expunha seu brilho de maneira despojada, sem pedantismos nem maneirismos. Tenho dois motivos para ser grato a ele: pela amizade com que sempre me distingüiu; e por ter, junto com o Nêgo Pessoa, me apresentado intelectualmente a Alberto Guerreiro Ramos, cuja obra influencia tanto o meu pensamento, como sabem meus pacientes leitores.
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.
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