Embora vários críticos da Lei da Ficha Limpa tenham afir­­mado que se trata de uma proposta demagógica, é difícil não ver nela um instrumento simples e poderoso para que a qualidade moral e política dos candidatos seja mantida ou aumentada

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Uma das palavras mais interessantes – e mais difíceis de traduzir – que a Ciência Política anglossaxã apresentou ao mundo é accountability. Em linhas gerais, ela corresponde à prestação pública e política de contas: não no sentido contábil ou financeiro, mas no de "dar satisfação". Se um político – ou qualquer servidor público, ou mesmo qualquer indivíduo – assume publicamente compromissos, é investido de responsabilidade e obtém determinados poderes para cumprir o que prometeu e realizar as atividades inerentes à função. A contrapartida desses privilégios é satisfazer necessidades sociais e dar satisfação ao conjunto da sociedade do que fez e do que não fez: isso é accountability.

Deixemos de lado as várias possibilidades sociais e institucionais da accountability e concentremo-nos em outra questão: a prestação de contas no caso dos políticos não é apenas pelas promessas feitas (cumpridas ou não), mas também pelo comportamento de cada político face às instituições públicas: cada político age de modo a reforçar a importância das leis e sua justiça? As liberdades públicas são respeitadas e reforçadas? Há um ambiente social de verdadeira participação na vida pública e de promoção do bem comum? Ou, ao contrário, tem-se a sensação de desrespeito ao bem comum, de leis parciais e particularistas, de comportamentos predatórios?

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A teoria atualmente aceita a respeito da representação política e das eleições estabelece que a sociedade escolhe com liberdade e, supostamente, com conhecimento de causa os candidatos que mais satisfazem as aspirações de grupos e indivíduos. De acordo com essa doutrina, os políticos sérios e "representativos" são eleitos e reeleitos, ao passo que os que não cumprem suas funções não obtêm a reeleição: essa é uma forma indireta de realizar-se a accountability.

Entretanto, por diversas razões, a qualidade política e até moral dos candidatos nas últimas décadas tem-se revelado baixa, em particular com postulantes que veem na representação uma forma de enriquecimento ou de obterem imunidade jurídica face a crimes diversos, em vez da realização de uma função pública, mesmo a despeito de uma suposta seleção feita pelos partidos políticos. Em tais casos, o descompasso entre a teoria da accountability eleitoral e a realidade social é gritante, pois inúmeros políticos vinculados diretamente ou indiretamente a crimes de diferentes espécies são eleitos e reeleitos: para minorar esses (d)efeitos, promulgou-se neste ano a lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n.º 135/2010), que impede que políticos condenados por diversas modalidades de corrupção candidatem-se a cargos públicos.

Embora vários críticos dessa lei tenham afirmado que se trata de uma proposta "demagógica" e "hipócrita", é difícil não ver nela um instrumento simples e poderoso para que a qualidade moral e política dos candidatos seja mantida ou aumentada. Minará a autonomia dos partidos? Isso é discutível, mas é ainda mais discutível o tipo de autonomia defendida para que os partidos apresentem candidatos com problemas na Justiça. A sociedade pode e deve escolher sozinha seus candidatos? Sim, sem dúvida, mas é sabido que o voto com "conhecimento de causa" é difícil e que o "bem comum", embora seja fundamental na vida pública, é uma categoria por vezes demais distante das preocupações dos cidadãos.

A lei da "ficha limpa" veio em boa hora: na verdade, demorou. Assim, todas as exceções que a Justiça (comum ou eleitoral) estabelece a essa lei servem para apenas um resultado: para diminuir a qualidade da votação e para degradar a República.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e professor da UTP. E-mail: GBLacerda@ufpr.br

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