É difuso, confuso, angustiante, persistente e crescente o clima de inquietação e revolta no país. Aos que recorrem ao histórico de crises como próprio da política para justificar o atual ânimo, cabe a resposta de que poucos têm vocação para imitar Jó bíblico. Este antes rico e feliz servo de Deus teve sua fidelidade colocada à prova ante uma saraivada de infortúnios, causados pelo demo com permissão divina. Atingido na família e nos bens, por uma doença repugnante e dolorosa, pelo escárnio da comunidade, Jó mantém-se resignado embora esbarrando no mistério de um Deus que elevando a justiça afligisse o justo.
Por fim, ao ver-se alvo de todas as injustiças de que o mundo está cheio, aflito e revoltado, experimentando momentos de crise e alívio, compreende de que a ninguém é dado o direito de julgar o Ser Supremo, infinitamente bondoso, sábio e todo-poderoso. Incólume na fé, mesmo em momentos de maior angústia pela provação, o justo sofredor da "dor inocente" têm devolvidos família e bens em dobro. A sociedade brasileira chega ao limite da tolerância para com os sucessivos escândalos de corrupção que emergem dia a dia, em especial das hostes do Executivo e do Congresso Nacional. Agravados pela absolvição e sobretudo pelos braços abertos do presidente aos comprometidos.
Se a rapina por si só é indigna, quando em quadrilha disseminada é insuportável. Todo esse lamentável quadro é agravado pelo desrespeito às exigências fundamentais para a vigência democrática. A desconsideração do Congresso para com compromissos assumidos junto aos eleitores, a sanha vexaminosa na defesa de interesses corporativos dele, a inobservância referente aos anseios e necessidades das bases populares, o sacudir de ombros para qualquer compromisso refletido na atitude da seleção brasileira de futebol em gramados alemães, leve, solta e descompromissada, convicta da impunidade , abalam a ordem democrática.
A acintosa atitude de parlamentares de todos os âmbitos políticos bem como de ministros e altos funcionários nas diversas instâncias do poder, dando as costas ao partido de origem ou filiação para acantonarem-se em outro "hábitat" aparentemente mais propício à vitória, é prova de desrespeito ao compromisso. Além do mais, a miscelânea das letrinhas solapa e põe a perigo a democracia, entravando o processo político. Para esses navegadores, sigla, estatuto, carta de princípios, ética, pátria, nada representam. Ególatras, nada vêem além do próprio umbigo. A mentalidade utilitária e momentânea é pragmática.
Convenções adredemente formadas desmoralizam o voto que deveria ser sagrado. Quanto à sociedade, pensam, ainda, que decepcionada e até envergonhada por tabela, acaba esquecendo o golpe. Não tem sido esse esquecimento útil a atitude presidencial para com inúmeros assessores e co-partidários faltosos? Mesmo em face dessas aberrações, um dia "a ficha cai". E a sopa do mensalão, caixa 2, sanguessuga, CPIs de todas as gamas, emendas parlamentares que se converteram em instrumentos espúrios de coopção compra de voto indireta , ao tornar-se indigesta demais resta intragável.
Política é o governo da sociedade pelo Estado. Não há problema prático possível que não seja governado consciente ou inconscientemente por princípios abstratos de sua própria finalidade. A decadência política e o conseqüente desprestígio no concerto das nações com que um país é atingido provêm em grande parte do abandono às preocupações doutrinárias. Toda civilização se forma pela nítida consciência de seus princípios e destinos. Ao instalar-se o esquecimento desses, sobrevém a decaída. O descaso pela coisa pública, a confusão entre o que é público e o que é privado, o desprezo à autoridade, as artimanhas para desvalorizar a ética, são golpes às vezes irreparáveis. É refletir e reagir.
Alzeli Bassetti, escritora e poeta, é vice-presidente do Instituto Ciência e Fé.
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