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A trajetória de sucesso de público e de crítica que vem sendo percorrida pelo filme Ainda Estou Aqui, premiado, inclusive, com um Globo de Ouro para Fernanda Torres, faz jus à qualidade artística de uma produção que é um apelo por humanidade. A obra se destaca pela atuação sensível dos atores, a brilhante reconstituição de época, a elegante trilha sonora e um roteiro primorosamente adaptado do livro de Marcelo Rubens Paiva.
O filme sublinha a necessidade de preservação da memória de um ente querido, alvo de violência injustificável, e de manter vivo um passado que ainda não foi totalmente submetido a um necessário acerto de contas no país. Daí que toda tentativa de boicote ideológico ao filme, foi, felizmente, infrutífera. A história dos Paiva cala fundo na alma, aproxima-nos por nossa capacidade de comoção e empatia.
Diante de um tecido social tão fragilizado pela polarização política como o que se observa no Brasil, a acolhida calorosa do público a Ainda Estou Aqui deveria ser vista como um convite ao diálogo político e ao início de uma reconciliação social entre os brasileiros
Disse Fernanda Torres, que interpreta a protagonista do filme, Eunice: “Você pode ser de esquerda, de direita, de centro, não importa, o filme vai te tocar em um lugar diferente”. O mais importante, contudo, é que toque todos por meio do repúdio irrenunciável a qualquer forma de opressão e da abjeção a todas as ditaduras. Ditadores não merecem consideração pela simples razão de que princípios e valores humanitários transcendem, ou ao menos deveriam transcender, inclinações e tribos ideológicas. Não há nada “bom” que um ditador possa fazer porque não há nada que não possa ser alcançado pela via democrática. Uma sociedade pode prosperar e garantir bem-estar social aos seus cidadãos sem que o governo espalhe o terror entre os que governa.
Diante de um tecido social tão fragilizado pela polarização política como o que se observa no Brasil, a acolhida calorosa do público a Ainda Estou Aqui deveria ser vista como um convite ao diálogo político e ao início de uma reconciliação social entre os brasileiros. Trata-se também de uma oportunidade de autocrítica por parte de cada um dos lados da clivagem ideológica que caracteriza o país.
Um saudável primeiro passo nesse sentido seria dado se direita e esquerda buscassem formas mais honestas de refletir sobre 1964 e o que se seguiu. Cabe à direita deixar de justificar o golpe sob o argumento frágil e questionável de que o Brasil corria o risco de mergulhar em uma ditadura comunista. Pior ainda seguir insistindo que as perseguições, as prisões, as torturas, os assassinatos e a censura perpetrados pelo Estado foram males necessários para evitar um mal maior.
Mas cabe à esquerda, também, fazer sua mea culpa. Há décadas, intelectuais, artistas, políticos e professores da chamada “ala progressista” se negam, por diversos interesses, a realizar uma revisão verdadeiramente crítica e isenta sobre o período. Invariavelmente, a narrativa da esquerda sobre 1964 e o regime militar incorre em tentação panfletária e segue uma linha superficial, maniqueísta e manipuladora que simplifica cenários e carrega ainda mais nas tintas do que já foi extremamente dramático, muitas vezes para realçar contornos de heroísmo inexistentes ou mais modestos do que foram e até para exaltar vilanias.
A vida no Brasil entre 1964-1985 é retratada pela esquerda como uma “distopia superlativa” capaz de fazer outras experiências totalitárias como a Alemanha nazista, o stalinismo soviético ou o maoísmo chinês parecerem brincadeiras de crianças. O enfrentamento entre o regime e seus opositores, principalmente nos chamados “anos de chumbo” é retratado em peças, canções, filmes e livros didáticos como uma luta sem nuances do bem contra o mal, como se todos que inicialmente apoiaram o golpe tenham se tornado, depois, partícipes do regime e cúmplices de suas atrocidades.
Já os que estavam combatendo o regime militar, são descritos, sem exceção, como pacifistas e abnegados que lutavam pela democracia no país. Muitos não eram. O plano dos grupos radicais armados era instalar no Brasil uma “ditadura do proletariado”. Sabemos disso por depoimentos públicos de ex-integrantes de suas fileiras. Obviamente, nada justifica que tenham sido torturados, exilados e mortos. Pode-se cogitar hoje que foi uma utopia de inconsequentes querer repetir no Brasil o que foi feito, por exemplo, em Cuba. Mas os guerrilheiros dos anos de 1960/70 acreditavam piamente que era possível.
Atentados à bomba, assaltos a bancos, sequestros, justiçamentos, mutilações e assassinatos ocorreram por obra e graça da luta armada e atingiram mais de uma centena de inocentes (civis ou militares de baixas patentes) que nada tinham a ver com a repressão e os homens do poder, a maioria não em combates francos e corpo a corpo, mas em situações de emboscada com os ardis típicos de ações terroristas. Os protagonistas e idealizadores dessas ações deveriam parar de ser apresentados como heróis românticos. E suas vítimas merecem ser lembradas como são, há muito tempo, as vítimas do regime militar. A memória não deveria apagá-las. Ainda estão aqui também.
Carlos Maurício Ardissone é doutor em Relações Internacionais pela PUC-RJ.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos