Como os membros da mais alta corte de um país devem se comportar diante de temas que suscitam polêmica? É possível que os julgadores façam declarações públicas sobre suas predileções pessoais e entendimentos jurídicos prévios sobre questões que ainda não foram julgadas? Ou a moderação, a prudência e até mesmo a imparcialidade seriam colocadas em xeque caso o futuro julgador antecipasse seu voto na imprensa? Estas e outras perguntas análogas são recorrentes em democracias midiáticas que se expandem na medida em que os veículos de comunicação ficam sedentos por likes na mesma proporção que seus atores sociais.
No caso do Supremo Tribunal Federal (STF), principalmente após a criação da TV Justiça, vive-se uma nova era de exposição pública dos ministros. Antes esquecidos ou enclausurados no mundo do direito, hoje têm uma projeção política impensável até 30 anos atrás. Portanto, e dado o protagonismo do STF em decisões que impactam a sociedade como um todo, cada frase, entrevista ou discurso de um ministro pode ser objeto de análises que extrapolam o universo jurídico.
Recentemente, em reportagem do jornal Folha de S.Paulo, o ministro Luiz Fux, que assumiu a presidência do STF em 10 de setembro de 2020, indicou que deseja evitar “temas delicados como drogas e aborto”, visto que “levariam o Supremo para o centro do debate público em meio a uma crise sanitária e econômica. Além de tensionar ainda mais a relação entre os poderes, já que são pautas caras ao bolsonarismo”. Em se admitindo a verdade acerca da informação, ela é de grande valia para compreender como a inclinação ideológica da corte move-se no tabuleiro político.
Fux, que na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, proferiu voto favorável a descriminalização do aborto nos casos de fetos anencefálicos, já estaria adiantando de maneira indireta que, em assuntos nos quais o governo Bolsonaro se mostra contrário, a corte tem uma inclinação favorável. Afinal, caso houvesse alguma convergência mínima de ideias, não haveria o temor de o STF ser colocado no centro de um debate público.
Aliás, nunca é demais lembrar que o ministro, em entrevista para a BBC Brasil no ano de 2017, já havia indicado que o STF estava prestes a chancelar a descriminalização do uso da maconha dizendo que “posteriormente vamos debater a possibilidade do comércio regular da droga”. Ora, se o STF vai debater essa política social de regulamentação de uma atividade ainda ilícita, o órgão é jurídico ou político? Ou estaria Fux sugerindo que alguma ação jurídica suscitasse tal questionamento ao órgão para que ele se posicionasse a respeito do assunto após a descriminalização da droga? Ou Fux entende que a simples liberação do uso da maconha já ofertaria prerrogativas para que o STF estabelecesse as leis do comércio regular desta droga, na medida em que o usuário não teria como adquiri-la em comércio paralelo? Por mais que a frase de Fux tenha passado despercebida de qualquer olhar crítico, ela não é ingênua ou deslocada de uma época em que o ativismo judicial tomou conta da mentalidade da mais alta corte brasileira.
Nessa mesma entrevista, o ministro enfatiza que é o parlamento que deveria debater a questão da legalização do aborto, entendendo que “é um problema de saúde pública”, mas que, se o “Judiciário for provocado nessa questão”, os julgadores terão de se pronunciar. O recurso argumentativo de Fux é bem conhecido: ou digam o que o STF quer ouvir, ou o STF dirá. Ora, imaginando que atualmente há uma inclinação governamental e social oposta à legalização do aborto e que isso é justificativa para não incluir na pauta do STF esta questão, é possível imaginar que a atual composição da corte é favorável à proteção da vida desde a concepção? Difícil imaginar que existam incertezas sobre isso, dado o amplo “progressismo” dos ministros. E, se alguém ainda tem dúvidas sobre o voto de Fux ou se ele acha que pode esconder sua “interpretação” sobre isso, alguém já ouviu um cidadão dizer que o aborto “é um problema de saúde pública” e ao mesmo tempo defender que o aborto é imoral? A ideia de saúde pública no tema do aborto é mais um daqueles eufemismos que os ideólogos da destruição da vida usam para suavizar o assassinato físico e moral do nascituro sem que a opinião pública fique tão enfurecida.
Outro ponto de sua argumentação diz respeito a uma ideia que representa uma verdadeira cortina de fumaça que encobre a realidade. Fux, assim como outros ministros, políticos, professores e ativistas pró-aborto, defende a perspectiva trapaceira de que o parlamento é o locus privilegiado para uma questão em que existem sinceras fraturas morais. Caso isso fosse verdadeiro, e caso essa premissa fosse efetivamente válida, a ausência de um debate mais profundo nas instituições de representação popular já encerra o debate, na medida em que os eleitores escolheram políticos que não desejam fazer com que essa pauta avance. Em suma, a maioria da população escolheu representantes que defendem plenamente os direitos do nascituro (ou pelo menos a legislação vigente), independentemente de seu estágio de vida, o que faz com que tal tema não seja alvo de votações para algum tipo de modificação legal. A ausência de um debate no parlamento, por mais paradoxal que seja, é o próprio debate.
Se a grande mídia, pensadores “progressistas” dos mais variados segmentos e manifestações sociais organizadas por feministas não conseguem angariar adeptos para que suas pautas abortistas ganhem espaço nas estruturas institucionalizadas de representação popular e suscitem uma discussão mais profunda, isso é um problema do jogo democrático. E é bom notar que, quando a democracia não funciona para tais grupos, sempre existe uma justificativa que responsabiliza amargamente seus opositores: para tais grupos, a postura daqueles que não desejam a descriminalização do aborto é reacionária, machista, patriarcal, conservadora, estúpida ou demonstra como a sociedade brasileira ainda não avançou em temas que todas as “sociedades desenvolvidas” já analisaram. O nível dos impropérios varia de acordo com o grau que o indivíduo goza na mídia.
Dessa forma, se Fux defendesse com sinceridade que somente o parlamento deveria se pronunciar sobre este tema, e sabendo que, ao não se pronunciar, significa que já se pronunciou, o que não é um paradoxo, por qual razão ele enfatiza que, caso seja provocado, tomará uma postura? Por mera obrigação jurídica, afinal, nenhum juiz pode deixar de avaliar pauta a ele submetida? Ou porque sua fala obedece à mensagem subliminar de que os representantes eleitos do povo devem fazer o que ele pensa antes que ele faça?
Mesmo que a reportagem da Folha de S.Paulo tenha falado em “bolsonarismo”, é importante lembrar que existe um embate prático entre ideias que giram em torno daquilo que a contemporaneidade chama de “progressismo” e “conservadorismo”. Apesar de as abstrações teóricas não constituírem objeto de estudo da maioria dos brasileiros, suas práticas são bastante sensíveis no cotidiano. Isso reflete a rejeição que a maioria dos cidadãos têm com relação à descriminalização dos dois temas em questão, drogas e aborto. Por mais que as pesquisas variem, pode-se dizer genericamente que os últimos índices apontam que cerca de 70% dos brasileiros não desejam que drogas e a prática do aborto sejam permitidas no Brasil. Embora a democracia não deva ser resumida aos desejos das maiorias, é bem verdade que ela não pode estar à mercê do pensamento de ruidosas minorias. Muito menos submetida aos desejos ideológicos dos 11 ministros do STF.
Se o STF estivesse tão seguro de que estaria defendendo direitos reais de cidadãos brasileiros, por qual razão se sujeitaria ao “bolsonarismo”, um nome fantasia que poderia ser qualquer outro que protegesse os valores contrários aos dos que os ministros comungam, e deixaria de cumprir seu papel de guardião da Constituição ao vigiar os direitos que ainda não foram concretizados em nossa sociedade? Se o aborto é um direito moral que as mulheres possuem e ao mesmo tempo está de acordo com nossa Constituição, qual é o receio que a mais alta corte tem para julgar essa pauta? É uma questão de direito ou uma questão de política? O STF defende a Constituição ou defende ideologias que interpretam a Constituição?
O ministro Fux sabe que a corte constitucional brasileira é bem política e pouco jurídica. Sabe quais são as ideologias que dominam o direito e como elas são contrárias ao que o povo pensa. Também sabe que, sem um devido encanto político, seus julgamentos jurídicos serão alvo de severas críticas populares que podem inviabilizar uma tranquila vida civil dos ministros. Por mais que espante, a ordem jurídica é peça acessória das predileções políticas de ministros que são marcados por um progressismo à brasileira, algo que oscila entre um patrimonialismo e uma esquerda festiva ligada a pautas que são gestadas no conforto de gabinetes localizados nas mais irracionais paredes intelectuais das universidades.
Se fossem questões efetivas de direito, pautas como aborto e legalização de drogas não poderiam se submeter a vontades políticas de uma maioria, sob pena de silenciar o direito de minorias ou de grupos supostamente desprestigiados em sociedade. Ou o STF não é um guardião da Constituição e a última voz das minorias e grupos desprestigiados? Se o STF “não pode renunciar à sua condição de instância contramajoritária de proteção dos direitos fundamentais e do regime democrático”, como afirmou Fux em voto proferido na análise conjunta das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 29 e 30, e Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.578, é possível que temas que interessem às minorias possam ser afastados da apreciação deste tribunal por meras questões políticas e vontade do presidente do STF?
Ao longo da história jurídica brasileira, os diversos documentos constitucionais foram paulatinamente perdendo seu caráter político e adquirindo uma essência jurídica, seguindo uma tendência ocidental, o que ofertou grande protagonismo ao STF e levou os ministros a travestirem inúmeras decisões políticas com as vestes de um direito aberto a interpretações das mais variadas. Para os proprietários, digo, guardiões da Constituição, não há direito sem política. E não há política sem ideologia. Assim como não existe indicação para ministro sem política ou ideologia. Mas pode até haver ministros que desconheçam ou subvertam o direito.
Declarações como as de Fux a respeito de temas polêmicos servem como trampolins para futuras demandas jurídicas que, antes de serem ajuizadas, verificam a receptividade prévia dos ministros por meio de declarações aos veículos de comunicação. A vocalização pública das inclinações políticas (e nem um pouco jurídicas) de um julgador funcionam como chocalhos que chamam a atenção de movimentos sociais sedentos pela aprovação de suas insanas pautas. Cientes de um possível sucesso, basta acessar um adequado canal jurídico para que o STF providencie o resto.
Ao evitar o julgamento de pautas como o aborto por razões políticas, Fux não deixa de antecipar o nefasto julgamento. O aborto do direito já foi realizado. Para que a imoralidade do aborto seja institucionalizada, basta um momento político apropriado. A suposta proteção de direitos fundamentais contramajoritários não passa de um discurso político proferido por um cidadão disfarçado de ministro e que mostra o caráter antijurídico da corte. Ao confirmar que o STF não julgará tais pautas “progressistas” por discordâncias com o governo Bolsonaro, Fux assume que elas não têm respaldo jurídico e que a corte é política. Ou, se assumidamente precisam de respaldo político para julgamento, a corte mostra como necessariamente deixa de proteger os supostos direitos fundamentais em nome da política. Isso não passa de um fisiologismo jurídico à brasileira.
João L. Roschildt é professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp) e autor de A grama era verde.
Número de obras paradas cresce 38% no governo Lula e 8 mil não têm previsão de conclusão
Fundador de página de checagem tem cargo no governo Lula e financiamento de Soros
Ministros revelam ignorância tecnológica em sessões do STF
Candidato de Zema em 2026, vice-governador de MG aceita enfrentar temas impopulares