O ensino de alunos superdotados demanda abordagens específicas que estimulem o seu potencial e respeitem as suas particularidades. Uma das chaves para esse processo é o conceito de “flow” ou “estado de fluxo”, desenvolvido pelo psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi. O estado de fluxo é caracterizado pela completa imersão em uma atividade, onde o indivíduo se envolve tão profundamente que a ação se torna uma recompensa em si. Este estado é especialmente relevante para alunos superdotados que, frequentemente, encontram maior satisfação e desenvolvimento ao serem desafiados de maneira adequada.
Essa experiência pode transformar a vida dos alunos, substituindo a alienação pelo engajamento e o tédio pelo prazer, além de proporcionar um sentimento de controle e fortalecimento do senso de self. No ambiente escolar, respeitar e fomentar o estado de fluxo dos alunos superdotados pode ser crucial para o desenvolvimento de suas habilidades e bem-estar emocional. A estrutura tradicional das escolas, no entanto, costuma interromper esse estado com métodos padronizados que não atendem às necessidades desses alunos.
O professor precisa se preparar para as diversas possibilidades de pesquisa e de resoluções que os alunos trarão, evitando lacunas no processo de aprendizagem
Para contornar essa limitação, são recomendadas metodologias ativas de ensino, como a Aprendizagem Baseada em Projetos (PBL). Estas metodologias incentivam a resolução de problemas reais em equipe, estimulando a criatividade, a inovação e o pensamento crítico. Aplicada, inicialmente, em faculdades de Medicina nos anos 1960, a PBL baseia-se nos conceitos de Jerome Bruner e John Dewey, promovendo um aprendizado prático e colaborativo que pode ser especialmente eficaz para superdotados.
Este artigo explora a aplicação do conceito de flow e das metodologias ativas de ensino como estratégias para educar alunos superdotados, destacando a importância do envolvimento profundo nas atividades e a necessidade de um sistema educacional mais flexível e adaptativo. Ao abordar essas questões, busca-se oferecer insights práticos e teóricos para melhorar a experiência educacional dos alunos superdotados e maximizar o seu potencial.
O flow descrito pelo psicólogo, psiquiatra e pesquisador húngaro, Mihaly Csikszentmihalyi, é o estado de total concentração e envolvimento em uma atividade pelo prazer da ocupação em si, desprovido de recompensa e que, segundo o autor, leva à experiência autotélica:
O termo “autotélico” deriva de duas palavras gregas, auto que significa “eu”, e telos que significa “objetivo”. Refere-se a uma atividade que não é feita com a expectativa de algum benefício futuro, mas simplesmente porque o fazer em si é a recompensa. A experiência autotélica, ou fluxo, eleva o curso da vida a um nível diferente. A alienação dá lugar ao envolvimento, o prazer substitui o tédio, o desamparo transforma-se num sentimento de controle, e a energia psíquica trabalha para reforçar o sentido do self, em vez de se perder a serviço de objetivos externos (CSIKSZENTMIHALYI, 1990, pp. 67, 69).
Csikszentmihalyi teve sua primeira experiência de flow quando ainda era criança, ao jogar xadrez em campo de concentração. Estudou o processo por mais de 20 anos, o que o levou ao estado de concentração total, revelando que estar absorto em uma atividade é o que leva a alcançar um estado ideal de felicidade e de satisfação profunda. O pesquisador distribuiu pager a centenas de pessoas de diversas profissões, idades, classes sociais e países. Cada vez que o pager apitava, o voluntário anotava o que estava fazendo, com quem se encontrava e por quanto tempo, e a emoção que sentia naquele momento.
Flow torna-se vital na medida em que se entende o funcionamento do cérebro do aluno que, por sua vez, vai elevando suas habilidades para um estado superior de desafio. Isso permite afirmar que o estado de flow conduz a um foco revigorante, gerando prazer no envolvimento e na motivação para realizar suas atividades, perdendo a noção de tempo e de espaço. Especialmente na criança é importante respeitar este processo. Interromper o seu estado de fluxo (flow) é como pegar uma tesoura e cortar a energia do seu cérebro.
O desafio é: na escola – que é um ambiente muito mais padronizado e automatizado do que em casa – como permitir que a criança processe o seu flow e, ao mesmo tempo, siga o processo curricular da escola em si?
Um exemplo metodológico para aproximar a atenção dos alunos com o programa escolar é usar o contexto em que estão inseridos. No “Project Based Learning” (PBL), ou “Aprendizagem Baseada em Projetos”, as metodologias ativas de ensino são reconhecidas por buscarem atrair o olhar e a observação do aluno, assimilando-as com algo tangível. A “Aprendizagem Baseada em Projetos” foi aplicada no final da década de 1960 nas Faculdades de Medicina das Universidades McMaster, no Canadá, e Maastrich, na Holanda. Nesse contexto, a aprendizagem acontece por meio de casos e os estudantes são estimulados a resolverem casos clínicos reais ou fictícios por meio dos conhecimentos que já possuem ou no desenvolvimento de pesquisas.
A base para a sua formulação seguiu os conceitos do psicólogo americano Jerome Seymour Bruner e do filósofo John Dewey. Uma das premissas do PBL é que a atividade seja realizada em equipe – formada por interesses comuns – em diversos ambientes, não se limitando à sala de aula. Isso permite que alunos de diferentes idades formem grupos, ampliando o seu repertório social e, juntos, ao conviverem durante determinado período nos mais variados ambientes, tais como laboratórios e jardins da escola, encontrem diversas respostas para o mesmo problema proveniente das distintas formas de raciocínio. É, portanto, o repertório individual que leva a um caminho de pesquisa, enquanto o conjunto desses repertórios leva a produções mais próximas da realidade de uma sociedade.
O desafio do professor está justamente nesse modelo de ensino e de preparação da aula, que deixa de ser expositiva e passa para um modelo de tentativa e erro, aprendizado interativo e pesquisa. O professor precisa se preparar para as diversas possibilidades de pesquisa e de resoluções que os alunos trarão, evitando lacunas no processo de aprendizagem. A avaliação do aluno também considera a estimulação da sua criatividade e inovação, valorizando o processo de muita tentativa e erro. Isso reduz o julgamento de que o aluno não se encaixa em padrões de aprendizagem, já que o erro não diz sobre a capacidade do aluno mas, sim, o processo de pesquisa.
Abstrair, generalizar e discernir; usar e manejar dados; dominar os princípios de pensamentos e realizar inferências lógicas; utilizar o raciocínio heurístico para criar problemas (sim, criar!); ser flexível usando a reversibilidade do pensamento nas operações; distinguir entre princípios empíricos e teóricos; visualizar cenários, estabelecer relações e tomar decisões em situações de resolução de problemas (este é o princípio de que mais gosto). Alguns teóricos, por sua vez, consideram que a criatividade e a inovação não sejam apenas a combinação original de ideias conhecidas, mas que precisam fazer valor para um número significativo de pessoas em determinado período de tempo ou da História.
Isso também explica porque muitos produtos foram ignorados quando lançados, sendo popularizados após décadas. Quando eu mostro algo novo para meu filho superdotado e ele fala muito educadamente “legal, mamãe” mas segue adiante, significa que a coisa, objeto ou lugar que lhe apresentei é novo para ele, mas não interessante. O mesmo acontece no ambiente educacional: não é apenas um projeto original e tecnologias novas que apreenderão a atenção do aluno superdotado, mas aquilo que lhe fizer sentido e lhe for apropriado.
Podemos, então, crer que projetos multidisciplinares e formação de equipes multi-idade funcionarão com alunos superdotados? Provavelmente sim, ainda mais se considerarmos o desenvolvimento assíncrono do superdotado, em que uma criança com idade biológica de 10 anos possui as mesmas habilidades matemáticas de uma criança de 14 anos e as habilidades sociais de uma criança de cinco anos. Envolver-se em grupos heterogêneos no que tange à faixa etária proporcionará o encontro de diversas histórias sociais, repertórios de comunicação e níveis e estágios diferentes de competências. Trabalhar em grupos de diferentes idades – quando o interesse no tema é o ponto de conexão e formação dos grupos – conduzirá à intersecção de diferentes técnicas de pesquisa e de resolução de problemas, levando a uma espiral de conhecimento – modelo usado para absorver e transferir saberes adquiridos – desenvolvendo não apenas as competências técnicas “exigidas” pelos parâmetros curriculares ou programas escolares, mas, também, o próprio know-how dos alunos que as colocam em prática.
Isso torna exponencial uma importante premissa na avaliação de alunos, já citada anteriormente, sobre considerar o raciocínio analógico – que envolve a comparação de representações mentais – e heurístico – que procura suas formas de resolver problemas. O aluno superdotado apreende rapidamente o que vê pela primeira vez, formando uma biblioteca exponencial de informações. Quando diante de um problema, por meio de analogias, ele acessa sua própria biblioteca de conhecimentos. Imaginemos, agora, esse aluno superdotado se envolvendo com alunos de diferentes idades em projetos multidisciplinares durante um espaço de tempo menor do que o usual (um ano por série, por exemplo). Ele terá a cada encontro não apenas novas fontes de conhecimentos mas, também, inéditas formas de pesquisa.
O sistema educacional foi desenvolvido para alunos neurotípicos – realidade em que, usualmente, o aluno superdotado apresenta sofrimento – e para os que fazem parte da Educação Especial por aprenderem de forma rápida, exigirem menos repetições e pedirem coisas diferentes de maneiras distintas. Atualmente, há muita desinformação sobre crianças superdotadas, mas há, também, movimentos de famílias e profissionais que estão colocando nas mãos de outras famílias, professores e formuladores de políticas, informações contemporâneas significativas sobre essa condição.
Você tem procurado conhecer como funciona o cérebro do superdotado e os seus estilos de aprendizagem? Os adultos responsáveis – e neste grupo se incluem os pais, cuidadores, professores, diretores da escola e das atividades extracurriculares – devem entender o funcionamento dos cérebros dos superdotados para que consigam atingir suas acomodações acadêmicas. Participar de atividades de enriquecimento e/ou frequentar programas para jovens superdotados faz com que eles se conectem automaticamente com seus pares e, muito mais que isso, se liguem a suas paixões.
Matt Zacreski afirma que após o Covid passamos de “muitos terapeutas e pouca consciência” para “muita consciência e poucos terapeutas”. Eu faço uma analogia com o atual cenário em que temos movimentos de famílias buscando mais informação sobre a condição neuroatípica dos seus filhos, ou seja, sobre neurodivergência. Chegaremos, então, ao ponto de termos mais consciência da neurodivergência e da superdotação e poucos profissionais de Educação lhes prestando adequado suporte? Bom, estatisticamente temos bem menos superdotados do que pessoas típicas. É possível, também, termos mais professores formados e mais investimento em formação de professores voltados à superdotação.
Como bem diz Zacreski, “as melhores práticas para educação de superdotados são as melhores práticas da escola.” Ou seja, elas já existem. Se começarmos a aplicar as melhores práticas, o resultado, a resposta, a produção será muito melhor para todos. É a relação Ganha-Ganha – teoria da Administração que considera a resolução de conflitos como oportunidade para se chegar a um resultado mutuamente benéfico. Adentro, então, numa questão crítica e me antecipo pedindo perdão aos meus amigos da Pedagogia (não é absolutamente nada pessoal), mas é usual ouvirmos que muitos jovens escolhem a Pedagogia por ser um curso fácil. Ora, quando alguém está com uma doença desafiadora, como câncer, procura um especialista da área que, sabemos, não está em todo lugar. Sua especialização foi difícil, intensa, complexa, e constituiu uma fase crítica da vida. Mas a infância também é uma fase crítica da vida. A criança leva anos para fazer sozinha coisas que depois, quando adolescente, se automatizam para o resto da vida. Então, os profissionais que cuidam dessa fase da vida também não deveriam passar por um processo de formação difícil, intenso e complexo? Temos total capacidade de aperfeiçoar e apurar a formação dos professores de crianças superdotadas, conscientizando a todos que a Pedagogia forma profissionais que lidam com a fase especial e crítica da vida de qualquer ser humano, e que aplicando as melhores práticas todos os alunos sairão ganharão.
A educação de alunos superdotados exige uma abordagem diferenciada que respeite suas particularidades e potencialize suas habilidades. O conceito de “flow”, desenvolvido por Mihaly Csikszentmihalyi, destaca-se como uma estratégia eficaz, proporcionando aos alunos um estado de imersão e satisfação profunda em suas atividades. Ao permitir que esses alunos alcancem o estado de fluxo, as escolas podem transformar tédio em prazer e alienação em engajamento, promovendo um desenvolvimento emocional e cognitivo mais robusto.
As práticas educacionais tradicionais, no entanto, podem interromper esse estado de fluxo, não atendendo às necessidades específicas dos superdotados. Para superar essa limitação, a implementação de metodologias ativas de ensino, como a Aprendizagem Baseada em Projetos (PBL), mostra-se promissora. Essas metodologias estimulam a criatividade, a inovação e o pensamento crítico, oferecendo um ambiente de aprendizado mais dinâmico e desafiador.
A integração de estratégias que fomentam o estado de fluxo com metodologias ativas pode criar um ambiente educacional mais adaptativo e inclusivo. É essencial que os adultos responsáveis – pais, professores e formuladores de políticas – compreendam e acomodem as necessidades dos alunos superdotados. A formação contínua e a conscientização sobre as características e estilos de aprendizagem desses alunos são essenciais para proporcionar um ambiente educacional que não apenas atenda às suas necessidades, mas, também, os desafie e motive adequadamente.
Ao fazer isso, não apenas atendemos às necessidades imediatas dos superdotados, mas pavimentamos o seu caminho para que alcancem o seu máximo potencial. Com uma abordagem educacional flexível e consciente podemos transformar a experiência de aprendizado dos alunos superdotados, garantindo que suas capacidades excepcionais sejam reconhecidas e devidamente estimuladas, promovendo um desenvolvimento harmonioso e pleno.
Lílian Schreiner-Módolo é doutora e mestre em Administração, graduada em Design Industrial, especialista em Docência do Ensino Superior, professora de graduação, de MBA, especialização e de mestrado, e empresária. Autora do livro “Glossário da Superdotação” (Editora Arcádia, 2024), “Teddy Roosevelt para Crianças” (Editora Arcádia, 2022. Foi Researcher Fellow na Universidade de Graz, Áustria e é vice-presidente da Associação Superdotação no Mapa, membro da Mensa e da Intertel, e mãe de superdotado.