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A folga é chamada de “recesso” e não “férias”. Afinal, por que deveriam exigir que o Poder Judiciário e os parlamentos na Europa e na América do Norte funcionassem em seus rigorosos invernos até a primeira metade do século passado? Frio intenso sem eletricidade, sem calefação, com a neve e a chuva deixando péssimas as condições das ruas de chão batido, o que impossibilitava o tráfego das carruagens e dos cavalos que conduziam os juízes, promotores de justiça e parlamentares? Certamente eles não chegariam no horário, ou chegariam molhados ou enlameados. Sobretudo com a neve acumulada. Tudo seria muito difícil e improdutivo.

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Mas o problema não era só no inverno. Ainda havia problema no verão, pois o calor também era intenso e não havia como refrescar os ambientes, o que inviabilizava o uso das pesadas togas e das enormes perucas – os trajes de uso indispensável aos juízes, promotores de Justiça e parlamentares de então. Eles ficariam suando o dia inteiro nos tribunais e nos parlamentos. Igualmente tudo seria difícil e improdutivo.

Então o melhor a fazer foi criar “recessos judiciários” e “recessos parlamentares”. Não se tratava de férias porque não existia isto (férias) em nenhum daqueles continentes, mas se tratava de parar o funcionamento regular dos dois poderes nestes dois períodos do ano – entre dezembro e janeiro por causa do frio, da neve e da umidade constantes que deixavam caóticas as cidades; e entre julho e agosto por causa do calor que impossibilitava o uso das pesadas vestes talares.

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Esta é a origem das atuais folgas que os nossos juízes, promotores de Justiça e parlamentares chamam de “recesso” aqui, abaixo do Equador. O Brasil tropical colonial do passado importou os “remédios” europeus e norte-americanos para os problemas do inverno e do verão de lá, daquela época, sem que aqui tivéssemos os tais problemas – a neve e a peruca, por exemplo. Os tradutores on-line atestam: “recess = férias parlamentares, recesso”.

Porém, já faz tempo que o ar condicionado chegou por lá, nos fóruns, tribunais e parlamentos; que o asfalto facilita muito o tráfego dos confortáveis automóveis que os conduzem; que as togas são, quando não facultativas, meros emblemas levianos sobrepostos aos ternos e vestidos para sinalizar a beleza da imparcialidade – como vista hoje no STF; que parlamentares não usam togas ou becas e ninguém usa peruca. Mas eles não abrem mão dos recessos “conquistados” nos séculos passados.

Sobre togas levianas e STF, talvez as exceções sejam aquelas pesadas que desfilam sob o ar condicionado daquele tribunal, cujos juízes e suas aparências talares nem sequer conseguimos entender direito, já que acabamos vendo só o que eles realmente são.

Mas a folga não é só esta. Aos recessos o sistema judiciário ainda acrescentou, é claro, as férias dos trabalhadores comuns, porém, em dobro: 60 dias. Assim, os nossos diferenciados funcionários públicos brasileiros do Judiciário têm o recesso do nosso frio de julho, o recesso do nosso calor de janeiro, a segunda metade de dezembro, o carnaval, a Páscoa e os 60 dias de férias deles. Mais de 90 dias de folga.

Assim, os nossos diferenciados funcionários públicos brasileiros do Judiciário têm o recesso do nosso frio de julho, o recesso do nosso calor de janeiro, a segunda metade de dezembro, o carnaval, a Páscoa e os 60 dias de férias deles

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Isso tudo apenas confirma que eles realmente são o que é a percepção geral – uma elite blasé totalmente deslocada da realidade socioeconômica. Vive uma utopia apática e blindada aos rudimentos do mundo real, como se a vida se resumisse aos avanços pessoais e às intrigas e competições corporativas. Politicamente asséptica, desde que não mexam em seus queijos – e vinhos.

É tão claro o quanto são injustificáveis tais recessos no Brasil quanto claro são mantidos como um oportunismo caipira imperdoável. Quem faz isso é quem deve exatamente oferecer justiça e leis. É uma conveniência histórica ridícula e custosa para a sociedade. E ainda nem estamos falando da performance terceiro-mundista das entregas produtivas à sociedade por ambos os poderes – tudo perfeitamente digital, mas com o resultado de sempre.

Na Europa e na América do Norte o mercado e o Estado funcionam normalmente até mesmo nas vésperas de Natal e do réveillon, e a partir do dia seguinte de ambos os feriados. Aqui, na prática, nada mais funciona a partir da metade de dezembro até, no mínimo, a metade de janeiro. Mas aqui só importamos costumes hedonistas.

Na Europa e na América do Norte também existe carnaval. Chama-se carnival e também mardi gras, o prelúdio da Quaresma, a famosa “terça-feira gorda”. Porém, o costume é celebrá-lo num único dia, numa terça-feira, indicando que a quarta-feira “de cinzas” é o primeiro dia da Quaresma. Aqui, tudo paralisa a partir da semana anterior ao carnaval até o domingo após o carnaval. O que justifica isso?

Há também na América do Norte o feriado do Dia de Ação de Graças em novembro, ao que está ligado o fenômeno de mercado da black Friday. É um dia, uma sexta-feira. Aqui, a Páscoa brasileira justifica quase uma semana de folga.

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É muita coisa, muitos recessos, muitas férias, muita folga. Já passamos por sete Constituições federais, inúmeras regulações funcionais, e até hoje ninguém cogitou sinalizar para a sociedade a virtude de que as autoridades estão preocupadas em produzir mais, melhorar o desempenho, parecer e ser discretos e austeros consigo e, por isso, ter a coragem de cortar estes excessos de folgas que não têm justificativa.

Importa acabar com estas incongruências indevidamente importadas há mais de 100 anos. E, aproveitando, eliminar títulos anacrônicos para se referir a um juiz, também importados de Portugal dos anos 1800, como o engraçado “desembargador” e o impreciso “ministro”. Um significava desengavetador do recurso jurídico; o outro, conselheiro ou sacerdote – quando todos deveriam seguir como juízes, que é o que acontece no resto do mundo.

Juarez Dietrich é advogado, Master of Laws (LL.M), pós-graduado em Processo Civil, ex-membro do banco de conselheiros do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa e do European Corporate Governance Institute, ex-diretor financeiro da OAB Paraná e especialista do Instituto Millenium.